Nesta entrevista tentei esquecer o impossível, tudo o que já havia lido sobre seu trabalho, procurei captar o mais recente e, na medida do possível, escapar da armadilha da opacidade, tão cara ao artista. Afinal de contas, da opacidade e da estranheza vive a arte contemporânea, e Angelo Venosa é mais que isso. 

Entrevista Paulo Sergio Duarte

Entrevista

9 de julho de 2012, no ateliê do artista, Rio de Janeiro.

Em 2008, a Cosac Naify publicou um livro sobre Angelo Venosa com uma análise crítica incontornável sobre sua obra feita por Luiz Camillo Osorio. O livro traz ainda uma preciosa seleção de textos de Flora Süssekind, Bernardo Carvalho, Lorenzo Mammì, Ivo Mesquita e Ronaldo Brito. Com a realização, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), de uma exposição que resume a obra de um daqueles que considero um dos mais relevantes escultores contemporâneos, a curadora Ligia Canongia me convidou a entrevistá-lo. Fiquei feliz, mas tinha medo. Angelo é um intelectual refinado de poucas palavras. Já disse: “Se eu quisesse dizer alguma coisa com os meus trabalhos, não faria esculturas. Escreveria um livro”. Assim se abre o texto de Camillo Osorio.[1] Não seria fácil retirar palavras de um artista tão consciente. Minha empatia com a obra vem de longe, lá dos anos 1980, quando, numa ladeira do bairro da Lapa, no seu ateliê, vi pela primeira vez aquelas formas estranhas, esqueletos encapados de lona negra como o asfalto. E depois, por essa empatia e amizade, tive o privilégio de observar seus desdobramentos no ateliê de Santa Teresa e agora no Horto. Em nenhum momento vi no trabalho um desejo de estar sincronizado com o meio de arte; ao contrário, quando um recorte no aço muito preciso se assemelha a uma forma orgânica ou quando as camadas de vidro se acumulam superpondo desenhos de tomografias imaginárias, todas vão a contrapelo do gosto contemporâneo. Enfim, sei que tenho uma longa afinidade com a obra de Angelo Venosa. Nesta entrevista tentei esquecer o impossível, tudo o que já havia lido sobre seu trabalho, procurei captar o mais recente e, na medida do possível, escapar da armadilha da opacidade, tão cara ao artista. Afinal de contas, da opacidade e da estranheza vive a arte contemporânea, e Angelo Venosa é mais que isso.

Paulo Sergio Duarte: Quais transformações estão ocorrendo nos trabalhos recentes? Sobretudo este último, que vi agora, ainda em execução, em que há um volume criado com facetas geométricas que são absolutamente inéditas no seu trabalho.

Angelo Venosa: Mesmo agora, quando o trabalho está em andamento, com a aparência mais ou menos conformada, ainda podem surgir algumas surpresas até que ele esteja, de fato, finalizado. Acredito que esses novos trabalhos mantêm uma relação intrínseca com os que eu fazia no passado, que eram revestidos por uma “pele”, esticada sobre uma estrutura de madeira. Há um retorno a essa pele, que também é estrutural, uma espécie de exoesqueleto. Há, porém, uma mudança no que diz respeito ao modo como cheguei a essa forma, que envolve algumas peripécias tecnológicas, processos que eu já vinha experimentando e pesquisando. Enfim, há um prazer em experimentar e encontrar um caminho, um fluxo. Em dado momento, esse fluxo, proveniente da sequência de ações do processo de trabalho, estabelece um nexo, que é determinante e que me devolve a sensação de pertinência, de rota. Vale lembrar que esses trabalhos começam a partir de uma modelagem em plastilina.

PSD: Aliás, material muito adequado para os trabalhos antigos.

AV: Comecei a modelar pequenas formas com gestos simples e rápidos, que remetem, de certa forma, aos trabalhos dos anos 1980. Em seguida, passei a capturar fotograficamente os ensaios de plastilina para criar um modelo digital tridimensional. Desse modo, encontrei um caminho que se iniciava com essa “massinha” e se transformava num modelo digital, tornando possível desmontá-lo e reinterpretá-lo. Também me interessa nesse processo, que encontra paralelo com outras experiências que eu já havia tido, a ideia de que todas essas formas são representações, versões, de uma mesma coisa dada. É como se o real – essa mesa que eu estou vendo agora, por exemplo – fosse uma das possíveis versões dessa mesma mesa. Faz-me lembrar de um trabalho de 1999, em que construí um autorretrato com pinos de madeira justapostos. Foi concebido a partir de uma reprodução em gesso do meu rosto. Utilizei um desses brinquedos em que você copia um objeto por meio de pinos metálicos, que se movem numa grade perfurada e que reproduzem a superfície do objeto. Desmontei um deles e utilizei a grade. Eu enfiava um pino metálico em cada um dos seus 1 500 furos e media com o paquímetro a diferença entre o plano da grade e a superfície do modelo. Foi necessário fazer uma tabela complicadíssima, porque, como a malha dessa furação era a 60º e não a 90º, precisei imaginar um tipo de anotação que, mesmo numa tabela com abcissa e ordenada, representasse a posição de cada furo dessa malha hexagonal. Enfim, inventei um modo de me divertir, de olhar aquele monte de números e pensar. Foi simplesmente outra forma de olhar a coisa concreta, que está ali no mundo real, palpável, que tem aparência, temperatura... Digamos que é uma maneira canhestra até de falar de uma mesma realidade que pode ser expressa por uma tabela ou por uma equação. O que me interessa especialmente nesse novo trabalho é sentir como se estivesse, mais uma vez, esbarrando nas inúmeras possibilidades do real, que carrega a sensação de imperfeição e incompletude e também a do próprio processo de fabricação, que é a um só tempo muito preciso e pouco preciso. Embora exista a possibilidade geométrica perfeita, ele está sendo fabricado de um modo que, por mais técnico que seja, por mais perícia que exista, resulta propositalmente estranho, por ser todo costurado com lacres de náilon.

PSD: Mas nada disso vai ficar visível?

AV: Ele é todo costurado e o acabamento vai ficar propositalmente visível. A costura é parte constitutiva da obra.

PSD: Isso cria uma diferença muito grande em relação aos trabalhos anteriores... Estou falando das primeiras esculturas, aquelas do meio para o final da segunda metade dos anos 1980. Havia ali um esqueleto, e suponho que tinha pele e esqueleto, mas sem carne e, no entanto, tinha volume. Era pele e osso e anunciava uma ausência interior, um vazio interior, como se estivesse desprovido de carne; embora evidenciasse apenas o esqueleto e a pele, alcançava volume, para enunciar exatamente esse vazio. A “Baleia”, que viria depois, anuncia justamente a estrutura interna daqueles primeiros trabalhos, em que você retira a pele. A “Baleia” é o mesmo método de investigação sem a pele, e agora surge uma coisa um pouco diferente, porque se explicita e torna visível uma articulação dos elementos entre si.

AV: É quase o avesso do problema. Continua havendo uma espécie de pressão interna. Falo isso devido a um dado bastante objetivo. Durante a feitura desse trabalho, muitas vezes me questionei se ele de fato ficaria em pé. Por mais que ele seja uma pele, é uma pele que pesa. Será que irá se acomodar, deformar ou estourar as costuras embaixo? Essa é uma resposta que ainda não tenho. Caso o trabalho não se estruture, será necessário preencher o vazio interno com algo que empurre a pele para fora, talvez algo inflável. Esse problema concreto me remete à existência do vazio. Há uma concretude ali, embora pareça uma contradição, porque, se o vazio é nada, é um nada que significa muito. Frequentemente meus trabalhos se propõem evidenciar esse nada, esse vazio. Peças que se valem do brilho da luz em sulcos e reentrâncias ou em placas de acrílico, que mostram o que não há. A espacialidade que se percebe nelas é proveniente daquilo que não está lá. Vale o que não está escrito.

PSD: Queria falar um pouco do trabalho em camadas, eu tenho uma ideia do trabalho em camadas. Acho que todo mundo vê essa questão quando faz engenharia de solo, as curvas de níveis de um terreno, uma espécie de exercício sobre uma territorialidade. Temos ainda, por causa da tecnologia médica, as camadas nas tomografias computadorizadas, nos estudos... E você explorou um pouco essas duas presenças da tecnologia de maneira poética, recortando territórios fictícios e, às vezes, o próprio cérebro, que você explorou também, não é?

AV: Eu utilizei, literalmente, a tecnologia médica, como você bem disse. Uma das minhas matérias-primas foi proveniente de uma universidade americana. Um condenado à morte doou o corpo para pesquisa e esse corpo foi fatiado e escaneado e gerou uma enorme coleção de imagens que posteriormente foram utilizadas em projetos avançados de um atlas digital do corpo humano. Essas imagens ficaram disponíveis na internet, e eu as consegui em meio físico. Esse foi meu material de trabalho durante muito tempo. PSD: Mas, em termos poéticos, você pensa mais no tempo ou no espaço quando essas camadas se apresentam pra você?

AV: É uma questão espacial.

PSD: ... um descontínuo no espaço, mais do que no tempo.

AV: Sim. E há também uma relação de microescala nesses trabalhos, como o que acontece quando se alteram a espessura dessas camadas e o modo como isso se relaciona com a escala geral. É uma relação bastante sensível. Algo que você escolhe e decide à medida que faz, por mais que essas peças tenham um caráter muito projetual. [O problema de] Lidar com esse fatiamento e decidir como será o resultado acaba sendo resolvido de maneira experimental e o que alimenta essa escolha é a percepção de espaço.

PSD: Na metáfora atemporal, as camadas são usadas, me lembro bem, em Tristes trópicos, do Lévi-Strauss, em que ele usa a questão da geologia. Na verdade não é bem o que eu queria dizer. Ele usa a visibilidade das camadas como a coisa mais interessante, para ele, do que todo o exotismo local. Apreciar camadas de terra se sucedendo no tempo era bem mais interessante do que as muitas coisas exóticas que via quando estava no Brasil. Mas eu estava...

AV: Em que texto ele fala de camadas?

PSD: Quando ele examina um terreno e consegue distinguir ali diversas camadas de tempo que se sucedem. A questão da metáfora geológica para a história da arte é muito útil, porque, na geologia, as camadas não são hierarquizadas por se sucederem na ordem do tempo. Ou seja, toda camada tem uma complexidade específica a seu tempo e se sucede na ordem do tempo, mas o fato de uma suceder à outra não significa um progresso. E, para falar da história da arte, uso muito essa metáfora porque ela é muito feliz para ensinar que o universo da arte é diferente do universo da ciência. O progresso é imanente no universo da ciência e, nas camadas que nela se sucedem (na ciência), necessariamente uma é superior à outra. No caso da arte, não, são diferenças de complexidades estruturais conforme o tempo. O que você faz aqui tem um interesse espacial, mas há esse ligeiro deslocamento, um mínimo deslocamento das camadas, o que cria uma diferença ínfima no deslocamento. Aqui existe um parentesco com a poética do minimalismo, em outra versão, em outra época, em outra situação, em um contexto poético inteiramente diferente, inclusive porque certas formas ameboides seriam absolutamente estrangeiras à poética minimalista. Mas esses deslocamentos ínfimos de uma camada para outra – e é provocante você interferir na poética minimalista dessa forma, a partir do ponto de vista espacial, com formas que negam essa tradição.

AV: Concordo com você. Olho para o que faço, para o que venho fazendo, e vejo de cara duas vertentes que são aparentemente antagônicas. Uma delas, mais cartesiana, um modo lógico e objetivo de construir o mundo, vamos dizer assim. E outra, em que há uma espécie de pressão da imagem, totalmente contrastante com a primeira e propositadamente mais desorganizada. Porém, um desordenamento que não é propriamente desordenado. É semelhante ao crescimento cancerígeno, algo que aparentemente tem um descontrole, uma força que você não consegue precisar de onde vem.

PSD: Como nas cidades contemporâneas, não é? As metrópoles, as regiões metropolitanas, são grandes metástases urbanas onde não pode haver nem polis nem urbes.

AV: E onde aparentemente não há lógica alguma, mas que, obviamente, tem sua inteligência interna, assim como o câncer tem sua inteligência interna. Eu percebo que são os nortes a partir dos quais eu me movo. Algo como resolver desmontando de maneira quase pueril, como uma criança desmonta uma coisa para entender seu funcionamento e depois remonta. Isso não resulta necessariamente em conhecimento ou entendimento, mas tão somente na experiência em si, que produzirá outro corpo. Um corpo que seria uma espécie de testemunho dessa experiência. Sinto-me fazendo isso o tempo todo, com os mais variados resultados e aparências, numa espécie de impulso formal que é de outra ordem. Não me sinto muito aferrado especificamente a nenhuma poética, no sentido de olhar para a história da arte ou para a tradição. Outro dia me peguei pensando nas minhas origens familiares, em sequência: meu pai era um cara cuja formação inicial era a marcenaria, depois foi para o Exército italiano, veio para o Brasil, trabalhava com coisas do fazer...

PSD: Muito sofisticadas.

AV: Sofisticadas não na execução, sofisticadas na vontade de fazer, na maneira de olhar o mundo, com uma poética singela, porém sofisticada – enfim, ele era um fazedor. Meu avô paterno, que não conheci, era também um construtor, fazia casas. Estou falando da virada do século XIX para o XX, no Sul da Itália, outro mundo, outro contrato social, outros modos de produção. Minha mãe costurava profissionalmente, desenhava, modelava. Olho para trás e sinto-me fundamentalmente um builder [risos]. Comentei com alguém outro dia que, numa certa tradição brasileira, o fazer não é coisa muito valorizada. É lógico que isso mudou, mas a gente se estruturou com um entendimento de que o fazer é coisa de fodido, não é? Então, o que eu estou tentando dizer é que tenho prazer em lidar diretamente com “a coisa”, seja fazendo ou desfazendo e refazendo. Às vezes, acho que meu motor é encontrar esse nexo. Neste meu trabalho mais recente, ainda não concluído, o que me deu mais tesão foi inventar esse fluxozinho: modelar a plastilina, fotografar... Esse conjunto de ações tem uma propriedade que, para mim, é o valor da empreitada. Há momentos em que você fica mexendo, patinando, escorregando... Aquilo não chega pronto. O nexo do que você está fazendo não é só o nexo do resultado, é também esse percurso. Um dia desses vi um documentário sobre Gerhard Richter, em que ele dizia que iniciava uma pintura sabendo exatamente o que ia fazer, e, assim que começava a pintar, aquilo tudo ia para o ralo e a pintura em si começava a dizer o que ele deveria fazer.

PSD: Acho muito importante o que você disse porque existe efetivamente, não somente nesse contexto peculiar da cultura brasileira que você marcou muito bem, com sua tradição escravocrata, o último país a abolir a escravatura no mundo ocidental, e isso fica muito marcado. Qualquer um que tenha morado em Paris e Manhattan sabe que, quando existe um prédio que tem entrada de serviço, é para fazer mudanças, não para os empregados entrarem. No entanto, isso permanece até hoje no Brasil, os empregados domésticos só entram pela entrada de serviço, têm que usar o elevador de serviço, não podem entrar pela chamada “entrada social”.

AV: Com uma normalidade assustadora, não é?

PSD: Pois é, com uma normalidade assustadora... Agora, a questão dessa operação de subestimação do fazer na arte remonta à segunda metade do Quatrocento. Ou seja, todos os grandes tratados renascentistas já estavam escritos quando a academia neoplatônica foi fundada em 1462 por Marsilio Ficino. E a academia neoplatônica veio para fundamentar ideologicamente a separação entre o artista e o artesão, ou seja, entre o fazer e o pensar. E isso é sintetizado de forma magnífica na frase de Da Vinci: “L’arte è cosa mentale”. O fazer é secundário, o importante é pensar a obra. Sem dúvida, ele tem razão, não existe obra de arte sem ser pensada, mas sem ser executada vira uma proposta no papel. O trabalho artístico ocupa o centro do interesse estético, isso é evidente até em teóricos atuais e livros recentes, como A partilha do sensível, de Jaques Rancière.[2] Ele vincula de forma muito clara aquela virtude que o jovem Marx, em seus Manuscritos econômicos e filosóficos [1844], vê no trabalho artístico e este não pode ser desligado da função estética no romantismo alemão, em que o trabalho artístico é o trabalho por excelência, exatamente porque dá ao mundo algo que o trabalho convencional não pode dar. E se formos ver hoje por que as pessoas se assustam com a valorização monstruosa da obra de arte no mercado – [elas] dizem “Que absurdo esses preços!...” – não há nada de absurdo. Em um mundo em que houve um declínio violento do trabalho convencional, a produção de valor pelo trabalho convencional é irrisória em relação à produção de valor pelo trabalho intelectual (basta o exemplo da indústria de software, em que o trabalho intelectual é evidentemente o mais relevante; o trabalho convencional presente nessa indústria é quase inexistente). O trabalho intelectual por excelência fica sendo o trabalho artístico porque, ao contrário de uma teoria científica, está diretamente vinculado à produção de uma mercadoria. E a obra de arte se torna o paradigma de todas as commodities. A obra de arte é a commodity por excelência, porque é produto de um trabalho intelectual único, que não pode ser repetido, que não pode ser reapropriado nem, em grande parte, coletivizado; ainda, hoje, apesar dos coletivos de artistas, aparece como trabalho individual. É um dos últimos trabalhos em que reside de forma evidente a autoria. A mercadoria arte é a detentora dessa forma de trabalho, que não pode ser igualada, por mais sofisticadas que sejam as outras indústrias.

AV: Você não acha que esse trabalho intelectual do fazer artístico pode se dar de uma maneira opaca? Uma inteligência que pode se dar no fazer, no embate. Há atualmente um barateamento da ideia de que o esforço intelectual é algo que se dá por meio de uma estratégia própria e específica. Há um enorme barateamento, por exemplo, da ideia de arte conceitual. Hoje praticamente toda arte que se produz, o grosso, leva, de uma maneira ou outra, essa etiqueta.

PSD: É, o Christian Boltanski vai ao extremo, ele disse: toda arte, qualquer arte é conceitual [risos].

AV: Mas, pelo meu lado enciclopédico, quando uso a expressão “conceitual”, acho necessário o respeito ao termo histórico, assim como quando alguém usa a palavra “moderno”, há um sentido histórico a respeitar – caso contrário, daqui a pouco não se sabe mais do que se está falando. O medo que tenho é de um total relativismo e de uma espécie de artifício intelectual. Isso tudo resulta em excesso de sentido.

PSD: Há uma grande diferença na obra de arte em relação à ciência: na ciência você pode formular uma teoria e ela vir a ser comprovada anos depois, décadas depois, e isso ocorreu várias vezes na história da ciência. Na arte, ao contrário, a teoria da arte só existe a posteriori. Ou seja, é necessário o confronto com o objeto de arte, com a manifestação artística, com o fenômeno artístico. Só a posteriori pode-se construir uma teoria da arte; uma teoria da arte não é formulada a priori, e sim a partir do fenômeno estético, do fenômeno artístico. Aproveitando que ainda há pouco você falou de elementos biográficos, como se deu sua escolha para ser artista, quando começou, que formação você teve?

AV: Vim para o Rio em 1974 para estudar Desenho Industrial na Esdi [Escola Superior de Desenho Industrial]. Nessa época, já tinha interesse em arte e já havia cursado um período da Escola Brasil, em São Paulo.

PSD: Você veio com que idade para o Rio de Janeiro?

AV: Vim para o Rio de Janeiro com dezenove anos.

PSD: E já tinha tido uma experiência na Escola Brasil?

AV: Sim. Em 1972. PSD: Que idade você tinha em 1972? AV: Tinha dezessete anos. Consegui meu primeiro emprego e com o salário pagava a Escola Brasil e uma prestação de uma câmera fotográfica usada [risos]. Já tinha clara a vontade de ser artista. Vim cursar desenho industrial que, por uns poucos anos, me afastou do desejo inicial. Pouco depois de concluída minha formação universitária na Esdi, comecei a frequentar o Parque Lage.

PSD: Mais ou menos em que ano você começou a frequentar o Parque Lage? AV: Foram duas ondas. A primeira onda em 1981, quando fiz cursos de litogravura que foram totalmente inofensivos. Depois, em 1983, tive vontade de pintar [risos] e voltei a frequentar o Parque Lage por pouco tempo, talvez uns seis meses. Isso valeu para me colocar em movimento e fazer amigos. Entrei para um ateliê coletivo em 1982, pintando. Isso mais ou menos coincide com a exposição Geração 80, da qual não participei. PSD: Você tinha esse ateliê coletivo com quem mais?

AV: Daniel Senise, Luiz Pizarro e João Magalhães. Nessa época, estava desestimulado com o que estava fazendo e comecei a interferir nas pinturas de uma maneira muito física. Meu primeiro objeto nasceu desse confronto com as telas. Comecei meu principio construtivo a partir de uma estrutura de madeira e tecido esticado por cima. A primeira peça que fiz tinha uma silhueta que reproduzia o desenho de um corte feito numa tela. Esse corte em curva desenhou a silhueta do objeto. Foi também o encontro com um modo muito pessoal de trabalhar, em relação ao qual eu não sentia nenhum embaraço. Porque na pintura existe um passado histórico ao qual você tem que prestar contas. Não se sai pintando impunemente. Naquele contexto eu não estava pensando em me tornar um escultor. Estava construindo coisas, sem nenhum embaraço e com muita liberdade. Não tinha ainda nenhuma referência forte. Curioso é que, sempre que me perguntavam o que me interessava na escultura brasileira, eu respondia que gostava especialmente do trabalho do Amilcar de Castro. E ouvia como resposta que meu trabalho nada tinha a ver com o dele. Mas não necessariamente o que eu gosto e me mobiliza me informa o trabalho. Pouco depois desse início, vi a representação inglesa na Bienal de São Paulo de 1983, que foi bastante reveladora para mim. Eram Tony Cragg (que havia exposto na Galeria Thomas Cohn), Richard Deacon, Antony Gormley, Anish Kapoor e Bill Woodrow. Lembro-me [de] que esse conjunto de artistas foi uma referência muito forte, em especial o Deacon. De certa maneira até pelo caráter pouco escultórico deles todos. PSD: Voltando ao trabalho, eu gostaria de fechar esse percurso biográfico. A primeira incidência de uma figura que eu vi no seu trabalho foram os perfis de crânio. Tem algum antecedente? AV: Acho que é a primeira mesmo. Duas coisas são próximas na época, o crânio e o fêmur.

PSD: Depois vem o crânio, e depois ainda vêm os crânios de pássaros.

AV: Os crânios de pássaros são bem recentes. Num primeiro momento, o motor dos trabalhos estava inserido numa ordem mais fantasiosa. Os objetos, o desenho das coisas, não tinham uma referência direta no mundo. Por mais que se possam enxergar esculturas biomórficas, elas não são representação de nada. Exemplo disso são as formas negras que mostrei na Bienal de São Paulo, em 1987. Na sequência, vieram os trabalhos com crânio e fêmur e simultaneamente os trabalhos com cera e dentes, como os que apresentei na Bienal de Veneza, em 1993. Foi quase como um mote para ter a glosa. Quando desfaço o crânio, o fêmur ou a vértebra, não estou preocupado em entender o que é isso. Não é um desmonte como o de uma máquina que funciona e cujo funcionamento eu tenho que entender. É quase um transe. Se eu devolvo outra versão dessa coisa para o mundo, que tipo de experiência tenho com esse fatiar e recompor? É como se eu estivesse cantando um mantra para, a partir dali, experimentar outra coisa.

PSD: E em relação a esses trabalhos que vi, mais recentes, com níveis arredondados curvilíneos?

AV: Os trabalhos em preto e branco? Na verdade, estou retomando o que eu chamei de referência mais fantasiosa. Só que antes eu movimentava as coisas com a força muscular e agora estou usando alavancas e artifícios. Por outro lado, não existe mais a referência direta. Nesse aspecto, esses trabalhos nada têm em comum com os imediatamente anteriores, em que eu também usava o princípio das camadas, mas partia de um crânio de pássaro, por exemplo.

PSD: E sobre a exposição de agora? É a primeira vez que você vai ver um conjunto de seus trabalhos estendidos num tempo tão amplo, desde a segunda metade dos anos 1980 até trabalhos em execução?

AV: Sim, essa é uma exposição que estou amadurecendo há alguns anos. Alguns trabalhos que não revejo desde 1986. Hoje chegou ao MAM boa parte deles. Porém, não foi possível abrir as caixas que contêm as esculturas que pertencem a acervos de museus, pois elas só podem ser desembaladas com o acompanhamento do representante de cada instituição. Eu poderia abrir as outras caixas, que contêm trabalhos pertencentes a coleções particulares, mas preferi não fazê-lo. Optei por esperar para desembalar todas ao mesmo tempo e ter a surpresa de revê-las em conjunto. Não quero ter a sensação de desmembramento. Será uma mostra bastante enxuta, com trinta peças. A escultura confeccionada para V Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, em 2005, ficará exposta na parte externa do museu e será doada para o MAM.

PSD: Quais as dimensões dela?

AV: Oito metros e meio por três metros.

PSD: Além da altura, porque ela é encorpada...

AV: Ela tem pouco menos de um metro de altura. Só quando ficou pronta e foi entregue em Porto Alegre, percebi que se movia com o estímulo do vento. Foi o que se deu quando ela foi colocada no deque junto ao rio Guaíba. Por mais óbvio que fosse, não imaginei que iria funcionar assim. Tenho construído a montagem de minhas exposições com muito controle. Fiz uma maquete digital da exposição. Porém, aqui, tenho a sensação de que vou acabar mudando e resolvendo muitos detalhes de montagem in loco, porque são muitas questões difíceis de resolver projetualmente. Além disso, em virtude de características intrínsecas a cada trabalho – por exemplo, uma peça pendente, com cinco metros de altura, que foi exposta na XXI Bienal de São Paulo, em 1987 –, o próprio espaço físico definiu o local onde ela poderia ser instalada. As peças que pesam muito, que são difíceis de movimentar, uma vez posicionadas, vão determinar o que gravitará em torno delas. Uma delas, pertencente ao acervo do Itaú Cultural, uma cabeça de fêmur, que pesa uma tonelada, será colocada em local predefinido, sem possibilidade de mudanças. Uma outra, com uma tonelada e meia, idem.

PSD: Sobre o espaço em si e essa distribuição lá no MAM: você não vai fazer ordem cronológica, não é? De jeito nenhum.

AV: Não é cronológico. Imaginei algo um pouco instalativo, como se eu estivesse criando um enorme corpo com as minhas peças. Só que existe aí um limite tênue. Não se pode ser excessivamente instalativo, sob o risco de anular a individualidade/propriedade de cada um dos trabalhos. Por outro lado não gosto da ideia de esgarçamento, em que não haja mais uma relação interessante de escala com o espaço geral. Vou deixar tudo aberto, sem paredes – já não existem os limites externos, uma vez que as janelas são panos de vidro. A paisagem externa invade a sala e há ainda aquele chão negro. Estou curioso para tirar as coisas das caixas e começar a sentir o real no lugar. Interessa-me, especialmente, saber como será a percepção dessas diversas escalas, quando se está em movimento. Depois que a exposição estiver montada, meu filho, Daniel, vai filmá-la. Acho que o filme dá conta melhor do que a fotografia, quando se trata de escultura. Porque existe essa mimese do movimento no espaço, e com o movimento é possível sentir o volume na relação espacial de maneira mais intensa.

PSD: Muito obrigado.

[1] Manya Millen, “Os ossos de um tímido em Veneza”. O Globo, Segundo Caderno, 25/12/1992. Apud Luiz Camillo Osorio, “Mundo sem voz, coisa opaca”, in L. C. Osorio (org.), Angelo Venosa. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 8.

[2] Jaques Rancière, A partilha do sensível, trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2009.

 

Publicado em A febre da matéria, Cosac Naify, São Paulo, 2013.