Embora não fossem nem de pedra, nem de madeira, nem de metal, eram esculturas que, desde o início, evocavam corpos. Quais? Diante delas tínhamos a impressão de contemplar algo resgatado de um longínquo e extinto nexo das formas orgânicas, uma ex-vida perdida e tornada ela própria escultura por processos alheios à escultura, daí a aparência de fósseis. Desentranhados de um mundo primitivo e violento, sem história e incomunicáveis, estranhos, assustadores até, tais corpos insinuam uma contiguidade incômoda e desconfortável em relação ao mundo atual. Como se fossem sedimentadas em outros tempos, apesar de, como nós, fazer parte da mesma cadeia da vida, podemos imaginá-las como seres fantásticos, mas também possíveis, que poderiam existir como os que de fato existem. 

Texto Paulo Venancio Filho

A metamorfose dos corpos

Na suposição de que já estamos na era posterior à do “campo ampliado da escultura”, a obra de Angelo Venosa exige como poucas e integralmente o termo “escultura”. Certamente não no espírito acadêmico, mas no modo como trata das características próprias dos objetos tridimensionais: peso, volume e massa de um objeto unitário, fechado, íntegro, sólido.

Na suposição de que já estamos na era posterior à do “campo ampliado da escultura”, a obra de Angelo Venosa exige como poucas e integralmente o termo “escultura”. Certamente não no espírito acadêmico, mas no modo como trata das características próprias dos objetos tridimensionais: peso, volume e massa de um objeto unitário, fechado, íntegro, sólido. E ainda como ele se situa no espaço – seja no chão, suspenso ou na parede. Até a cor dos seus primeiros trabalhos sugeria uma superfície impenetrável, resistente, dura, própria da escultura. Estão aí, portanto, as características essenciais do que se entende por escultura, sem tirar nem pôr. E isso sem nenhuma pretensão a uma pureza escultórica – muito pelo contrário. Antes de tudo são esculturas e querem afirmar o que são, e nada mais. Estranhas à tradição geométrica, estranhas ao ready-made, estranhas aos objetos da tecnologia, parecem emergir de uma pré-história, não propriamente a da escultura, mas a dos corpos dos organismos vivos. Informes demais para serem construtivas, grandes demais para serem surrealistas, só poderiam reivindicar, ainda que de modo totalmente heterodoxo, a tradição escultórica dos corpos. Embora não fossem nem de pedra, nem de madeira, nem de metal, eram esculturas que, desde o início, evocavam corpos. Quais? Diante delas tínhamos a impressão de contemplar algo resgatado de um longínquo e extinto nexo das formas orgânicas, uma ex-vida perdida e tornada ela própria escultura por processos alheios à escultura, daí a aparência de fósseis. Desentranhados de um mundo primitivo e violento, sem história e incomunicáveis, estranhos, assustadores até, tais corpos insinuam uma contiguidade incômoda e desconfortável em relação ao mundo atual. Como se fossem sedimentadas em outros tempos, apesar de, como nós, fazer parte da mesma cadeia da vida, podemos imaginá-las como seres fantásticos, mas também possíveis, que poderiam existir como os que de fato existem. Elas nos enfrentavam, sobretudo, por sua impositiva presença física, em confronto com a nossa, num corpo a corpo desigual e inusitado. Desde cedo elas a todos surpreenderam em face de sua dimensão inusitada para os padrões locais da proximidade e intimidade. Surgiam numa escala, em certos momentos, quase monumental; das poucas a enfrentar sem timidez a amplitude do espaço urbano. Não por acaso aquela que está na cidade, ao ar livre, na praia do Leme, se chama Baleia [título atribuído] – o maior dos corpos vivos e dos animais vertebrados. E me parece mais que metafórico que esteja ali entre o mar e a cidade, não porque seja baleia, mas por ser uma intromissão que lembra a presença do orgânico e do arcaico na virtualidade contemporânea e que é a poética própria do trabalho. Ela em si mesma manifesta a estranha dissonância essencial que a obra apresenta entre a arquitetura da cidade e o gigantesco organismo animal, como mundos à parte que se ameaçam surdamente. Essa escultura, além de impor uma presença que inibe a proximidade física ou afetiva, intimida pela dimensão e também pela aparência de organismo híbrido: animal, mineral ou vegetal – que não se sabe qual é, nem de onde e quando veio. Podem ser corpos, organismos, esqueletos e ossos calcinados, esquecidos de outra era; corpos dormentes que, num refluxo, a contrapelo do mundo contemporâneo das imagens, se fixam num silêncio intransponível, fechados e compactados, a cujo interior ou exterior não temos nenhum acesso. Seguindo alternadamente a estrutura formal dos vertebrados, como se o elemento primeiro fosse o osso e daí a matéria, um reverso do outro – chega-se a distinguir as vértebras por trás da superfície –, encontramos uma investigação da estrutura e da forma dos corpos, poética há muito esquecida, ou evitada, que aqui pode ir do maior animal ao delicado crânio delicado de um pássaro. Essa investigação logo vai se valer de certas técnicas científicas, radiografias, tomografias, cujas imagens se transferem para a materialidade da obra como estratos geológicos, curvas de nível ou superposição de camadas, o que provoca o surgimento do surpreendente visual pictórico, op. E o preto e o branco, tão afins à redução concretista, tomam outra direção: duas das últimas esculturas tensionam a forma geométrica, deformando-a – círculos e triângulos sofrem distorções, contorções, que agora fazem parte dos efeitos visuais de que a obra se utiliza. Novamente surge uma escultura feita de uma soma/repetição de cortes, um sobre o outro, mas absolutamente abstrata, enfatiza inclusive pelo material – acrílico. Temos então corpos sintéticos, não mais aqueles estranhamente naturais. Ficaram para trás as reminiscências do orgânico; entramos diretamente na esfera do mundo sintético. Desaparecem por completo as marcas da manufatura, a mão do autor por mais distante que ela estivesse. É como se a escultura tivesse abandonado um período, um estágio, do vertebrado para o seriado, do orgânico para o sintético. Do ateliê para o laboratório, um salto “evolutivo” acompanha o andamento tecnológico do mundo. O acrílico, o recorte computadorizado do material, o seu ordenamento mecânico, preciso, irretocável, dos produtos em série. A estranheza, contudo, permanece intacta, como se na forma permanecesse uma revolta intrínseca, uma inquietude em se manter igual a si mesma, inconstante e volúvel, informe e variável. Expandindo-se e contraindo-se, tal como os organismos de outrora. A estranheza anterior da forma é substituída por um fascínio pela superfície, e desponta uma nova e inusitada dissintonia visual entre volume e superfície. Mantém-se, entretanto, alguma semelhança com as curvas de nível, simulando camadas geológicas distintas, porém sem mais formarem aquela estrutura corpórea tão evidente dos vertebrados. Ao explorar a visualidade do corpo, a escultura faz-se menos sugestiva, mais ativa, projeta-se ao invés de se interiorizar como antes, abre-se qual uma espécie de simulação de paisagem natural ou paisagem alterada artificialmente, criando uma arquitetura do invólucro, que se expande sinuosa e pulsante – metamorfoses do corpo. Antes calada, silenciosa, a escultura agora se “comunica”, rompe a sua mudez, abre-se a um contato visual rítmico. E a energia interna, que estava presa, vem à superfície. Um impulso dinâmico se impõe e domina o entorno, contagiando o espaço. Se for possível aproximar nesta curta análise momentos afastados da obra é porque ela se permitiu uma visão retrospectiva, ou seja: a sua história em desenvolvimento.