"É quando o signo se coloca em sua insignificância, que o originário, o fundo velado de toda natureza, pode se apresentar". [F. Hölderlin]
O espaço generoso da galeria Celma Albuquerque é convidativo para exposições em dupla. Sempre que penso nessa possibilidade de duas obras conversarem em uma mesma exposição, penso primeiro nas diferenças do que nas aproximações. Seda no confronto com o seu oposto que uma poética melhor revelaria sua força e especificidade. Neste aspecto, é extremamente relevante o encontro de Angelo Venosa com Paulo Pasta.
Na verdade, não se trata exatamente de oposição mas de complementaridade. A impressão imediata de que eles se separariam por uma disjuntiva do tipo orgânico / formal, é, em um segundo momento, abandonada. O desenvolvimento de suas obras foi revelando que, por trás da aparência de antagonismo, há semelhanças poéticas importantes que dizem respeito à temporalidade da experiência artística.
Ambos resistem às exigências apressadas de serem contemporâneos; de certo modo aceitam, tranqüilos e sem nenhuma nostalgia conservadora, a condição de inadequação ao presente. Os dois artistas forçam também uma mesma dilatação do tempo que pulsa no interior dos trabalhos; ou seja, são trabalhos que recusam uma entrega imediata.
Como observou Paulo Pasta em uma entrevista - e essa fala poderia estar relacionada à obra de Venosa – "a coisa que mais me toca, que mais me preocupa é o fato de que tudo se acaba, que nada permanece, que todo mundo vai morrer – essas coisas todas me acompanham. ( ... ) Eu tenho a impressão de que pintar é um pouco isso para mim também, ou me salvar, o que dá no mesmo. A minha pintura tem essa contradição também: ao mesmo tempo que tem essa coisa apagada, por trás, ela tem uma potência de cor, uma vontade de que tudo esteja bem, uma idealidade, que é um pouco o motor dela." O enfrentamento do tempo nesses trabalhos é antes de tudo uma consciência da finitude, do limite, não só do homem, mas da arte.
Os dois artistas surgem em um momento marcado por uma euforia hedonista. Resultado: eles nunca se encaixaram entre os artistas da chamada geração 8O. A tradição moderna ainda pulsa dentro de suas obras com um sinal positivo e não como paródia debochada. No caso de Pasta, o ato pictórico vinha, e ainda vem, carregado de hesitação, sendo tomado por uma vontade angustiada de lidar, e enfrentar, uma morte anunciada da pintura. Sua pincelada, abafada pelo peso da história, ganha leveza impressionante ao acontecer na tela.
O mesmo se dá com Venosa. Sendo dos poucos escultores da denominada geração 8O carioca, sua opção por ossos, carcaças e matéria orgânica garantiu-lhe, de saída, um estranhamento incomum. Sua personalidade de poucas palavras é transposta para a arte dando-lhe um sinal de contenção e seriedade. Com o passar dos anos, todavia, sua obra foi se depurando, buscando elementos menos carregados de referências simbólicas e mais resistentes à configuração plástica. Ele foi se desvinculando de uma tradição romântica - revivida pela presença marcante de Beuys na cena contemporânea - e foi atrelando a figuração ao próprio embate com os materiais.
Ao que parece, a figura foi deixando de definir a priori a constituição plástica das peças e foi sendo gerada do interior do próprio processo escultórico. Em vez de determinar a fatura da matéria, a imagem passa a responder, sem submissão, às suas exigências. Se compararmos os retratos feitos com madeira àqueles realizados com cacos de vidro podemos ver o quanto a m~ acolhe e suaviza a expressão, ao contrário do vidro, que a toma más severa.
As caveiras de madeira tendem, com o tempo do olhar, a se transformar em verdadeiros labirintos, onde o emaranhado de linhas recortadas se sobrepõe à figuração Fma relação entre o tão e as parta, entre uma visão geral da imagem e a fragmentária das partes componentes, vai se tornando cada vez mais interessante. É como se cada segmento que compõe a figura ganhasse força e fosse deslocando o nosso olhar da imagem para a sua realização. Essas esculturas impõem a visualização da sua fatura, os fragmentos coladas lado a lado, dando um ritmo interno para a forma. A evidência plástica do ato de esculpir – cortar, quebrar e colar os cacos de vidro – desacelera o modo de visualizar a figura ou a forma; ou seja, o tempo de formalização é dilatado, expandido, alargado.
Do mesmo modo, as passagens de tom recorrentes na pintura de Pauto Pasta vai freando nosso modo de apreender a estruturação formal que recua para o fundo da tela. Quaisquer que sejam essas formas, colunas ou peões, elas tendem a se esfumar e se misturar ao véu de luz difusa que dá unidade à composição.
Como salientou o crítico Rodrigo Naves, "olhando para a sua pintura eu tenho a impressão de que ela propõe para o observador uma experiência, ou seja, ela tem uma espécie de vagar, uma lentidão que de alguma forma propõe ao espectador um tempo que é mais ou menos um tempo de secagem, de sedimentação das coisas, enfim, um tempo da experiência" . Portanto, esse tempo que sai de dentro da matéria pictórica, do uso concentrado e experimentado das cores, tende a desacelerar o nosso olhar, a puxá-lo para um momento entre o ver e o nomear, e mantê-lo aí.
A pintura de Pasta se encontra na confluência impensável de Ad Reinhardt e Manuel Bandeira. O acúmulo da experiência histórica da pintura moderna misturada ao resgate da surpresa diante das coisas simples e triviais. Toda a secura do pigmento é compensada pela fluência do pincel, criando uma pintura que se afirma, timidamente, pelo adiamento de sua presença.
As passagens de tom ditam uma temporalidade arreia à passa do olhar contemporâneo Como a forma de Venosa, que vem surgindo do ritmo estabelecido pelo processo de cortar e colar o vidro, em Pasta ela surge de dentro das várias e sutilíssimas quebras de tom.
Os dois artistas compartilham, portanto, uma mesma vontade de levar o signo a sua insignificância para deixar aflorar daí um olhar mais atento às múltiplas intensidades do aparecer das coisas.
Luiz Camillo Osorio
As duas citações foram extraídas de, Paulo Pasta, Edusp, SP, 1998