O artista elege a sombra, com a sua misteriosa e suave irradiação, como a ordem constitutiva da realidade, uma verdadeira estrutura de pensamento que intensifica, dinamiza e abala a relação entre o volume e o espaço.
A escuridão é indispensável para apreciar a beleza.
Junichiró Tanizaki, Elogio da sombra
Angelo Venosa é considerado um dos principais expoentes do cenário cultural contemporâneo. Trabalha em territórios híbridos, cultiva as ambiguidades perceptivas que guardam infinitos enigmas. Inquietas e interrogativas, suas obras problematizam a visão do espectador. Com vasta experiência vinda de trabalhos artesanais, Venosa abre outros horizontes de investigação e de pesquisas estéticas, sempre sintonizado com recentes especulações científicas. Suas obras suscitam uma variedade de significados, residem em um mundo fluido, permeado pela tecnologia digital, que faz parte de sua lógica de trabalho, criam um novo espaço para a sua arte transitar e ampliam o campo da sua poética.
O artista elege a sombra, com a sua misteriosa e suave irradiação, como a ordem constitutiva da realidade, uma verdadeira estrutura de pensamento que intensifica, dinamiza e abala a relação entre o volume e o espaço. Explora a equivalência calculada e precisa entre as áreas cheias/vazias, através da projeção de sombras e da incidência da luz nas paredes da instituição, que solidifica as vigorosas formas, que produzem uma nova realidade visual.
Envoltos nas sombras, nós, espectadores, estamos diante da ordem e do acaso, do fluxo e do controle de um calculado grupamento de elementos que brotam da luz e sublinham outra visibilidade, uma espécie de palpitação subterrânea. As sombras geram fenômenos incorpóreos, imateriais que provocam uma experiência muito direta. Esse tênue equilíbrio entre as formas físicas e as projetadas adquire uma existência autônoma, um desenvolvimento volumétrico pela oscilação ótica incessante do momentâneo com o permanente. As formas básicas tendem a se expandir, de maneira vibrante, sob diferentes reações à luz, criam uma espécie de agigantamento, cultivam as dualidades perceptivas. No seu livro Arte e ilusão, E. H. Gombrich afirma que “a ambiguidade é a chave de todo o problema da interpretação da imagem. A representação é sempre uma rua de mão dupla. Ela cria um elo, ensinando-nos a passar de uma interpretação para outra”.[i]
À medida que esses trabalhos se desenvolvem, as obras emergem e passam a ter uma plasticidade inesperada, um novo afinar de sensibilidade que traz aos olhos um particular sentido. Toda uma noção de movimento se faz presente nessas sombras movediças, constelações transitórias, onde brotam as formas mais variadas e ambíguas. Essas zonas de indeterminação adquirem uma presença plástica que se constrói e se experimenta no próprio espaço.
O primeiro conjunto de esculturas que passa a realizar nos anos 90 pontua as suas coordenadas básicas e apresenta uma intensidade orgânica, com o primado de uma estrutura abstrata e soluções diferenciadas para o deslocamento do espaço. Utiliza materiais viscosos, flexíveis – parafina, cera, madeira, chumbo, além de outros inusitados, como dentes de animais, ossos e, mais adiante, recorre aos materiais tradicionalmente vinculados à prática escultórica como o acrílico, lâminas de vidro, aço Corten ou mármore. Venosa já anunciava uma problemática diversa do ideário construtivo e da vertente minimalista, ao deixar evidente a independência de sua linguagem visual e a singularidade do seu fazer artístico. Suas primeiras esculturas já eram portadoras de algumas das questões que tiveram seus desdobramentos nas obras posteriores e reverberam outra vontade ordenadora, que alia o material orgânico a produtos industrializados.
A nova série de trabalhos desperta indagações, muitas, e sempre nos desconcertam. O agenciamento de outros materiais para construir um novo continente de trabalho vai presidir a criação de um núcleo de obras envoltas em incidências luminosas que se desenvolve numa turbulência interna, em que as formas oscilam e tomam posição, no sentido de multiplicar os planos, criar uma ambiguidade espacial. A inclusão real da sombra abre um espaço possível, articula a nossa percepção, os nossos modos de ver, e essa simultaneidade de acontecimentos que segmenta um novo território parece sonegar a verdade do olho e possibilita uma grande variedade de acessos a uma realidade cifrada.
Angelo Venosa evoca um duplo encontro através da presença física de formas escultóricas com a experiência de suas sombras como uma linguagem que argumenta uma categoria de representação. As sombras se avizinham ou se distanciam, mas todas disputam enunciar a sua presença, rompem a rotina imaculada das superfícies do recinto arquitetônico da instituição, tornam o espaço mais ativo pelas estruturas dramaticamente contrastadas pela sua duplicação. Tomamos consciência das incertezas ao observar os intervalos de luz e somos completamente envolvidos por aquilo que estamos contemplando, formas inesperadas nos confrontam e avançam sob intensos contrastes de luz e sombra.
Submersas nas sombras, as formas se irradiam; a imagem real e suas nervuras tendem a se prolongar além dos limites da forma original,suas saliências e reentrâncias se agigantam, assentam-se nas paredes, adquirem desenvolvimento volumétrico e convergem para materializar o espaço nas áreas negras mais intensas.
O hiato entre a forma real e a projetada se intensifica e o espaço perde a sua qualidade estática, a sua serena passividade, e surge um espaço fluido, onde a proximidade e o afastamento das coisas traz uma realidade vibrátil, dinâmica, sobre a qualidade do permanente. A ideia da simultaneidade, do presente imediato, de experimentar coisas distintas e irreconciliáveis ao mesmo tempo, coloca os nossos nervos despertos. A visão sucessiva das sombras, como um fazer estruturante e sua aparência de dissolvência, coloca-nos diante de uma dicotomia consolidada, de um território do fazer, onde o feito pode mostrar-se como ainda se fazendo. Não é uma representação, mas uma revelação, algo novo que está para ser descoberto para além das coisas físicas. Nessa fronteira ambígua entre o real e o representado, Daniel Arasse em seu livro Não se vê nada, chama a atenção para uma conversão do olhar, sugerindo que “nada vemos naquilo que olhamos. Ou, talvez melhor dito, naquilo que vemos, não vemos aquilo que olhamos, aquilo que procuramos, aquilo que esperamos encontrar: a emergência do invisível no campo da visão”.[ii]
A relação de distância parece ser ordenada segundo a existência de corpos sólidos que interceptam a luz, submersos nas sufocantes exigências das sombras, que parecem interpelar o mundo, incorporar dilemas e colocar a nossa percepção numa encruzilhada, num enigmático jogo de onde-estar-no espaço diante dessa duplicação e dessa simultaneidade de acontecimentos. Pensar de novo não o que já foi pensado, mas o que está subjacente ao pensado.
As condições do olhar e seus paradigmas atravessam todas as contemporaneidades. A sombra, que faz parte do vocabulário artístico desde a Antiguidade, encontrou um lugar perceptivo no campo da escultura e gerou uma multiplicidade de evocaçõesem diversas práticas estéticas como no pensamento dos construtivistas russos e de artistas como Man Ray, Christian Boltanski, Olafur Eliasson, Vito Acconci, Nalini Maiani, Mona Hatoum, William Kentridge, entre muitos outros. Didi-Huberman propõe uma postura crítica na própria cisão do olhar, entre o percebido e o ausente, o artefato e a aura ao comentar “o que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois”.[iii]
Angelo Venosa estabeleceu novos campos perceptivos: um campo de obscuridade e um campo de claridade e podemos nos apropriar desse espaço amplo e diversificado com um único golpe de vista. A obscuridade é solicitada a representar o mundo e nos levaa meditar sobre o significado da representação, de outra realidade, visível mas projetada, que é apenas o seu duplo – e ocupa outro território da percepção. Sedutoras e intrigantes, as sombras são passageiras, efêmeras, algo transitório (gewordenes), mas o jogo de luzes e sombras aqui presentes determina uma escala de aparência monumental. As formas sólidas parecem exageradas ou transgredidas e nos apropriamos duas vezes do trabalho, como uma espécie de duplo, dobras da memória. Despertam um enredo de possibilidades e nos levam a pensar, como afirmou o filósofo Maurice Merleau-Ponty, “que as coisas estão apenas entreabertas diante de nós, reveladas e escondidas. É impossível dar conta dessa experiência inaugural quer fazendo do mundo um fim, quer fazendo dele uma ideia. A solução – se houver – só háde surgir quando interrogamos essa camada sensível, ou, então, quando deixamos cativar por seus enigmas”.[iv]
Esta nova exposição de Angelo Venosa impressiona pela amplitude de questões que apresenta e coloca-nos no terreno da inquietude. As peças instaladas na penumbra do espaço que as acolhe parecem infringir os limites do fenômeno visual, criam uma atmosfera espessa, em que o jogo de aparências que rege a vida coletiva se faz presente. Essa junção de aparências nos traz um espaço de estranheza do mundo, o rondar o incerto, um perguntar como podemos ver mais do que vemos? Essa parece ser uma alternância constitutiva da obra, fissuras que se abrem no nosso sentimento de existência, em regiões desconhecidas; parece estabelecer reinos paralelos no território do fazer, onde o feito pode mostrar-se como ainda se fazendo. A esse respeito Giorgio Agambem comenta “suspender assuas certezas, ver no escuro ou através das sombras”. A gravidade das sombras, com suas ambiguidades aparentemente insolúveis, passa a interferir no modo como percebemos as coisas, torna-se a interface do seu fazer artístico. A área escura, por sua presença, confirma uma ausência e torna-se consistente ao nosso olhar.
Ao trabalhar com a irradiação do visível, Angelo Venosa nos faz percorrer as incorpóreas sombras projetadas, introduzindo uma espécie de dupla leitura pela imagem e pelo volume, como um ativador poéticoquedesperta nosso interesse nos avessos, pois há o vazio e uma pulsação temporal e espacial. O artista edita outras formas que intensificam um mergulho instigante em um mundo cifrado por uma permanente construção de instantes que ativam uma emissão poética, formam unidades intensas, inesperadas e intensificam o jogo de ambiguidades visuais. Sacra conversazione.
Vanda Klabin é historiadora e curadora de arte. Nasceu, vive e trabalha no Rio de Janeiro.
[i] Gombrich, E. G. Arte e ilusão.Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1986.
[ii] Arrase, Daniel. Não se vê nada.Lisboa: Kkym, 2016. (Coleção Ymago).
[iii] Didi- Huberman, Georges. O que vemos, o que nos olha.São Paulo: 34, 1998.
[iv] Merleau-Ponty, Maurice. O filósofo e sua sombra. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.