A produção recente de Venosa, em que painéis de vidro são pendurados ou colocados paralelamente uns aos outros, cada um contendo uma inscrição, cujo significado é revelado a medida que todos os painéis estiverem sobrepostos, torna-se uma representação gráfica muito apropriada para falar de como a escrita no seu trabalho se relaciona com sua obra como um todo.

Texto Michael Asbury

Deixo que pensem o que quiserem

A produção recente de Venosa, em que painéis de vidro são pendurados ou colocados paralelamente uns aos outros, cada um contendo uma inscrição, cujo significado é revelado a medida que todos os painéis estiverem sobrepostos, torna-se uma representação gráfica muito apropriada para falar de como a escrita no seu trabalho se relaciona com sua obra como um todo.

Passando em revista a recepção crítica do trabalho de Angelo Venosa nas últimas duas ou três décadas, encontramos reflexões brilhantes de autores, críticos e curadores dentre os mais perspicazes do Brasil. Distanciados entre si pelo tempo e pela natureza mutável da profissão de artista, esses comentários podem ser considerados, quase de maneira diagramática, uma série de apanhados que ganham forma e coerência como fios intercalados de um corpo de trabalho.

A produção recente de Venosa, em que painéis de vidro são pendurados ou colocados paralelamente uns aos outros, cada um contendo uma inscrição, cujo significado é revelado a medida que todos os painéis estiverem sobrepostos, torna-se uma representação gráfica muito apropriada para falar de como a escrita no seu trabalho se relaciona com sua obra como um todo. Como em um mapa topológico, só se chega a um modelo se camadas forem acumuladas, sobrepostas.

Como artista, Venosa parecia não se encaixar no padrão de seus colegas da Geração 80, que despontaram em geral no fim da ditadura militar e estão associados à rejeição festiva das práticas conceitualistas cerebrais e muitas vezes austeras dos anos 1970, propondo um retorno à pintura e à arte figurativa. Mas, uma vez que a pintura está tão fortemente associada à euforia da época, seria equivocado afirmar que as esculturas de Venosa compartilhavam desse sentimento. Expressiva e exuberante, era como se a pintura estivesse respondendo, agressiva, ao seu tão aguardado obituário. Enquanto pintores eram celebrados pela sobrevivência – se não pelo renascimento – da sua mídia, as esculturas de Venosa eram percebidas paradoxalmente como vivas, apesar de fossilizadas.

Em 1986, o crítico Ronaldo Brito leu as obras de Venosa como formações que lembravam seres estranhos que, a despeito de sua escala gigantesca, não possuíam massa alguma. Brito interpretou isso como um resultado do fantasma que assombrava o escultor contemporâneo, confrontado pela morte das formas modernas.[1] A escultura, segundo esse relato, estava numa posição desencantada: não era “nem monumento da tradição, nem determinação inédita do espaço”.[2] A morte, a exaustão da mídia e a conclusão resultante disso, de que o artista teria que lidar com, através e contra essa condição inevitável, era vista como fator determinante na obra de Venosa.

Em retrospecto, contudo, a direção que sua obra tomou parece distinta, a despeito da análise de Brito ainda ser pertinente e às vezes profética. Ao deixarem de ser “fósseis vivos”, os “seres estranhos” de Venosa passaram a “sublinhar a experiência temporal”, como Flora Süssekind pertinentemente sugeriu, no final dos anos 1990, ao considerar toda a prática de Venosa uma experiência de intrasserialização.[3] Se a serialização diz respeito à repetição de entidades ou unidades, a intrasserialização remete às subdivisões da unidade. Tanto a primeira como a última evocam o infinito, uma como o número de unidades que cresce sem parar e a outra como um número infinitamente crescente de frações dentro da unidade. Mas não é integralidade, nem formal nem semântica, o que Venosa procura. Fragmentos intercalados permitem a ascensão da transparência, negando a interioridade da forma e ao mesmo tempo enfatizando como o significado é evasivo, sem deixar de permitir que “o livre curso das associações imaginárias”[4] viesse à tona, como disse Brito. No entanto, se a intrasserialização é uma boa descrição de um processo formal e conceitual de pensamento criativo, pode-se dizer que na obra de Venosa há uma força tão importante quanto, capaz de fugir da linearidade que o conceito de intrasserialização sugere.

Se considerarmos a crítica que Donald Preziosi fez à disciplina da história da arte, descrevendo-a como cinemática, ou seja, como um aparato cujo propósito é organizar “a história das obras de arte de modo que ela fique ordenada como história da estética”[5], nota-se uma conjunção interessante entre intersserialização e a intangibilidade da obra:

Tudo deve “permanecer” e “ficar estável”, preservando e projetando uma fixidez de significado para registrar, no olhar deles, um olhar do eu integral. Desafiados a encontrar unidade nas obras, acabamos por encontrar nossa própria unidade. Mesmo que – até especialmente se – alguns trabalhos recusem unidade e fixidez de significado.[6]

Podemos especular sobre como a obra de Venosa responderia a tal visão da história da arte? Por um lado, a homogeneidade que a categoria “Geração 80” pressupõe hoje nos parece absurda, dadas as diferentes trajetórias que os artistas seguiram. Por outro, e um modo um tanto perverso, a obra de Venosa vem tentando cada vez com mais frequência achar um ponto em comum com a pintura.

Ao organizar (intra)séries de painéis bidimensionais para obter um delineamento parcial de um objeto tridimensional, Venosa lembra e simultaneamente subverte a representação cinemática da história. Aqui, a natureza do objeto, o assunto da obra, é essencial.

Süssekind lembra o tema de vanitas em pinturas de natureza-morta como um meio de interrogar a predominância de caveiras, ossos e dentes que, ao final dos anos 1990, já caracterizava os materiais e/ou assuntos de Venosa. O termo vanitas traz à mente a transitoriedade das coisas e seres, tornando-os insignificantes quando confrontados pela morte inevitável. Esse tema inerentemente moralista perpassa a tradição de natureza-morta do século XVI. Mas se a insignificância do objeto é a principal localização da obra de Venosa, hoje não faria sentido associá-lo à crítica moralista das coisas da vida real. Ao contrário, ele se torna uma invocação da insignificância da forma em si, e como tal adquire sua ambivalência contemporânea, sua opacidade, como descreveram alguns, subvertendo os limites com que sua escultura se confrontava no início. Ao inverter essas limitações, Venosa invoca e nega a história da arte e suas categorizações e propõe, em seu lugar, monumentos no espaço que estabelecem novas determinações de tradição. Isso se dá não de maneira paradoxal, como o artista sugeriu uma vez, em referência à sua admiração pelas esculturas de Amilcar de Castro, e sim por meio de uma relação oblíqua com a tradição, seja ela da arte brasileira, seja da herança cultural internacional.[7]

É como se o artista tivesse se atribuído a tarefa impossível de obter um ponto de transparência semântica parecido com aquilo que Ferreira Gullar associou à noção do não objeto. É claro que a materialidade das formas que escolhe, o fato muito nítido de serem objetos, vai sempre negar o cumprimento desse objetivo, já que seu significado residual, sua condição fossilizada de sobras de seres vivos, nunca permitirá sua existência como formas desinteressadas. Mas é aqui que aparece, com ou sem o consentimento do artista, sua relação com a história, considerada quer por meio da forma, quer por meio da estrutura. Mais do que o uso comum do ferro em estado bruto, a relação que Amilcar de Castro e Angelo Venosa estabelecem entre a superfície e o espaço pode ter sido alcançada a partir de processos totalmente distintos – um dobra o plano, o outro o multiplica –, mas ambas as práticas vão em direção a uma ponte entre as categorias tradicionais de pintura e escultura, como Gullar disse, em 1959, sobre o caminho que a arte tomaria. Não é uma questão de especificar antecessores, cânones, ou qualquer articulação linear entre os dois artistas. Ao contrário, a relação é muito elíptica e lembra a descrição que Preziosi fez da história da arte como um arquivo anamórfico, uma intrasserialização que requer uma distorção para longe da tirania do ponto de vista único cartesiano, que determina sentidos e significados predefinidos. De fato, o processo de Venosa não consiste simplesmente em fragmentar e intersserializar – trata-se de um processo que, por meio da técnica milenar do anamorfismo (a deslocalização do ponto de vista para longe da linha perpendicular), investiga a natureza da obra como estrutura e conceito. A tradição de vanitas emerge novamente fragmentada e intrasserializada dentro dos painéis de vidro, ao mesmo tempo enfatizando e negando a singularidade de perspectiva da imagem. A história é mais uma vez evocada pelos exemplos como o da pintura de Hans Holbein, The Ambassadors [Os Embaixadores] de 1533, que apresenta a caveira anamórfica no fundo do centro da cena. Nesse caso, há duas direções interpretativas. Uma delas, vista de frente, demonstra as conquistas do protagonista. A outra, vista pelo lado direito e alinhada com a representação da parede perpendicular com a justaposição do crucifixo no topo e a caveira anamórfica embaixo, apresenta o fantasma da vida espiritual. Em suma, Holbein atribui significados diferentes às posições dentro do espaço praticamente tridimensional da imagem e o espaço real do ambiente por intermédio da justaposição de materialidade e espiritualidade mostradas perpendicularmente. O trabalho de Venosa parece perpassar padrões geométricos semelhantes apenas para esvaziar qualquer leitura interpretativa. Seu painel de tomograma de ferro é um sintoma do uso do anamorfismo para abstrair ao invés de representar. Essas fatias de organismos, bidimensionais, se ignorada a largura do material em si (um elemento que Venosa exploraria em outras versões em madeira) são anamorfizadas através de gráficos de computador, porém o espectador fica sem pistas ou razões para ver o formato original de um ponto de vista específico.

Em outras palavras, Venosa transformou a suposta exaustão das formas da mídia que escolheu em seu próprio modus operandi em um tipo de prática arqueológica que trabalha com, por meio de e contra as pressupostas limitações da escultura. Nesse processo, há vários estágios (intrasseções) entre dois ímpetos equivalentes e opostos. Numa, o objeto tridimensional é apresentado através de fragmentos bidimensionais; na outra, um fragmento bidimensional é distorcido e colocado dentro do espaço tridimensional. Forma, estrutura e tradição são unidas em ímpetos intuitivos e experimentais que questionam, distorcem e reconstituem relatos consensuais, sejam eles formais, conceituais ou históricos. Em suma, está implícita na frase do artista “Deixem que pensem o que quiserem” a seguinte afirmação: me deixem fazer o que faço.

 

[1] Ver Ronaldo Brito, “Singulares e equívocas”, in Angelo Venosa (catálogo). São Paulo: Subdistrito Comercial de Arte, 1986; republicado em L. C. Osorio (org.), Angelo Venosa. São Paulo: Cosac Naify, 2008, pp. 228-31.

[2] Id., ibid., p. 230.

[3] Flora Süssekind, “Angelo Venosa e a intrasserialização”, in F. Süssekind & R. Salgado (orgs.), Imagem escrita. Rio de Janeiro: Graal, 1999, p. 52; republicado em L. C. Osorio (org.), Angelo Venosa. São Paulo: Cosac Naify, 2008, p. 212

[4] R. Brito, op. cit., p. 231.

[5] Donald Preziosi, Rethinking Art History: Meditations on a Coy Science. New Haven/Londres: Yale University Press, 1989, p. 59.

[6] Id., ibid., p. 69.

[7] Ver Luis Camillo Osorio, “Angelo Venosa: Mundo sem voz, coisa opaca”, in L. C. Osorio (org.), Angelo Venosa. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

 


Publicado em A febre da matéria, Cosac Naify, São Paulo, 2013.