A obra de Angelo Venosa evidencia a vocação entrópica da dobra contemporânea: o momento em que ela se fecha definitivamente em si mesma, segrega seu próprio espaço. Seu ponto de partida não é o conceitualismo da década de 1970, e sim a volta à pintura da Geração 80, um movimento que, a princípio, revalorizava o imaginário e a gestualidade espontânea do artista
A estrutura fundamental do modernismo, sobretudo o de matriz construtiva, foi a grade: um sistema de linhas ortogonais paralelo ao plano da tela, a partir do qual era possível construir “boas formas”. A grade garantia o trânsito entre o mundo das coisas e estruturas da percepção, funcionava como um filtro. Na arte dos últimos trinta anos – em reação, crítica e aprofundamento não apenas da tradição construtiva, mas também de seus desdobramentos na arte minimalista e conceitual –, ela sobrevive, porém em estado de torção, ou de dobra. Por torção ou dobra, quero dizer toda transformação que, mantendo a posição relativa dos pontos, altere de uma maneira qualquer as distâncias que os separam – curve, encurte, estique. Mas também a tendência da grade a se dobrar sobre si mesma, fechando-se a relações com o espaço ao redor. Não se trata apenas de um grau mais elevado de complexidade: o que entra em crise é a capacidade que a estrutura da obra tinha de se expandir, de se propor como parâmetro para o mundo. Torna-se duvidosa a própria distinção entre o espaço e o objeto que se posiciona nele: a confiança, por um lado, na possibilidade de um movimento livre e homogêneo e, por outro, na existência de volumes compactos, claramente distintos de tudo o que os cerca.
No Brasil, a crítica à grade modernista já encontrou êxitos importantes na década de 1970, sobretudo na obra de Cildo Meirelles – das Malhas da liberdade aos Espelhos cegos, até a síntese de Através. Tratava-se, nesse caso, de conferir à grade, ou, mais em geral, à superfície da imagem bidimensional, certa viscosidade ou lentidão. Transformados em objetos reais, linhas e planos tropeçavam uns nos outros, estorvavam o caminho mais que estabeleciam relações sem resistências. No entanto, o movimento de dentro para fora, e vice versa, não era interrompido: apenas se tornava menos genérico, mais individual e concreto. O filtro ganhava corpo, contudo ainda era reconhecível como filtro.
A obra de Angelo Venosa, ao contrário, evidencia a vocação entrópica da dobra contemporânea: o momento em que ela se fecha definitivamente em si mesma, segrega seu próprio espaço. Seu ponto de partida não é o conceitualismo da década de 1970, e sim a volta à pintura da Geração 80, um movimento que, a princípio, revalorizava o imaginário e a gestualidade espontânea do artista. Logo ficou claro, entretanto, que essa retomada já não era possível, porque a subjetividade afirmativa que pressupunha deixara de existir: as imagens não brotavam de uma interioridade, e sim de citações da história da arte ou da cultura de massa; a tela se cobria de acidentes, ganhava protuberâncias que se projetavam para fora dela, o próprio formato era questionado por apêndices e rabichos. Enfim, se o gesto do artista se pretendia livre, mas afinal não fazia senão reproduzir e variar gestos do passado, o plano da tela, por sua vez, agia como se fosse dotado de vontade própria, e pressionava para se projetar no espaço. A estratégia de Venosa, inicialmente, foi deixar que essa tensão prevalecesse, que a tela se curvasse e virasse coisa.
Traços de pintura são reconhecíveis num dos trabalhos mais antigos dessa exposição (Sem título, 1985). Os recortes na madeira também são análogos aos movimentos do pincel, quase gestos no espaço. A tela esticada lhes confere uma unidade a posteriori, estabelecendo uma curva de nível que media as diferenças. O resultado se parece com uma ilha montanhosa, como se a forma fosse gerada por um somatório de fenômenos telúricos, independentes e inconscientes um do outro. Nos trabalhos expostos na Bienal de 1987 e nos imediatamente subsequentes, emerge a remissão a formas orgânicas, portanto a certa ordem interna (repetição e progressão na forma dos recortes que sustentam o revestimento). Mas os tecidos aos quais essas formas remetem não são propriamente vivos: são ossos, dentes, exoesqueletos. Por certo são formas que crescem e se estruturam por um impulso vital, diferente da inércia mineral da sedimentação ou cristalização; tirando isso, porém, não apresentam nenhum traço de animação. Vitalidades fechadas, cegas e surdas, que não se comunicam: não há nada, aí, que se pareça com um órgão de sentido. Na superfície, o gesto pictórico é definitivamente expulso, prevalece um preto ou prata metálicos de carapuça, um marrom bruno ou amarelado de cartilagem envelhecida.
O que nos causa repulsão em formações desse tipo, quando aparecem no mundo animal ou na tela de um cinema, é que embora sejam coisas vivas, a vida delas é voltada unicamente para dentro. Não se comunicam conosco, nem parecem interessadas em fazê-lo. A única relação possível com outro objeto é a incorporação, ou melhor, a deglutição: Alien, que não tem olhos, é de 1979; A mosca, que acaba se fundindo com parte da máquina que a gerou, é de 1986. De fato, uma tendência entrópica é reconhecível também em muita arte, a partir da década de 1980. A perda de confiança na capacidade de intervir nas transformações sociais e de comportamento – ou melhor, o desaparecimento de transformações sociais e de comportamento no plano em que a arte poderia intervir – levou à busca de certa opacidade. Diante de um fluxo de informações sempre mais acelerado e, no fundo, autorreferente e tautológico (somos informados apenas de que estamos sendo informados), muitos artistas reagiram recusando-se aos códigos, ao discurso, para reafirmar, surdamente, a possibilidade da experiência das coisas. Esse traço, porém, raramente emergiu de maneira tão assustadora e, ao mesmo tempo, irônica, como nas obras de Venosa daquela década: seus “bichos” exibem uma obtusidade cruel de monstros do abismo e uma leveza lúdica de bonecos. São compactos, mas frágeis; explicitamente artificiais, mas portadores de uma vida cuja origem desconhecemos.
Os trabalhos com cera e dentes da década de 1990 podem ser lidos como desdobramentos da mesma questão: são autofágicos. Muitos têm a boca voltada para dentro. Outros, dentes ou fragmentos de crânio soldados com chumbo, mordem seu duplo e não soltam a presa. O único comportamento de que são capazes é remoer-se. Mas, como a cera e o chumbo são materiais amorfos por definição, o que cerca e fixa esse ato interminável de mastigação não é uma estrutura ou um corpo, e sim uma massa indefinida, cujos limites geométricos, quando há, não passam de recortes aparentemente arbitrários, numa extensão virtualmente indefinida.
Uma escultura em aço corten de 1994, que reproduz um osso (uma cabeça de fêmur, acredito) cortado em fatias finas e depois remontado aproximadamente na forma original, marca uma transição importante. As imprecisões do corte fragmentam as curvas do osso no sentido do comprimento e conferem independência a cada corte horizontal. A princípio, parece se estabelecer finalmente uma relação entre o todo e as partes, entre o crescimento orgânico do osso e nossa capacidade de medi-lo e compreendê-lo. Em outras palavras, o esquema racional volta aparentemente a cobrar seus direitos sobre a forma orgânica. Entretanto, cortar um osso em fatias não significa descobrir seu interior – apenas multiplicar suas superfícies. Cada fatia é um osso: não importa quantos cortes façamos, não chegamos a um dentro, assim como, ao olharmos a imagem de um exame de TAC não vemos o interior da pessoa analisada, mas uma pessoa transformada em inúmeros exteriores, toda linhas e planos. Desse mesmo raciocínio derivam diretamente duas esculturas de 2005, em que vários cortes de um mesmo osso (um crânio?) são reproduzidos numa única chapa fina de aço corten; e finalmente numa escultura recente (2012), em que uma forma já não reconhecível (superposição de cortes de outro osso, imagino, talvez transformadas anamorficamente) é reproduzida em várias chapas. Estas, por sua vez, são sobrepostas de maneira a formar um volume. Ou seja: o volume é recortado em planos virtualmente infinitos e reduzido a um único plano. Esse plano, então, superposto a si mesmo por um número indefinido de vezes, gera outro volume. O que chama a atenção, nesse caso, é que o resultado continua proporcionando a impressão de uma forma orgânica: como se o que faz de um objeto um organismo não fosse uma determinada disposição reconhecível de suas partes, mas uma qualidade intrínseca a cada ponto, independente de sua ordem e disposição.
A escultura de 1994 é a fonte desses trabalhos, e também de toda a produção posterior. Os procedimentos de dissecção e fusão, superposição e anamorfose substituem os de estruturação e recobrimento, que fundamentavam as obras anteriores. Os trabalhos em vidro da década de 1990 e os mais recentes, em metacrilato, parecem afinal destrinchar o que está embutido nas esculturas em aço, cera ou fibra de vidro. Agora o desarme analítico está à vista, podemos distinguir cada linha. Mas, de novo, os ossos não se tornam por isso meras formas, nem revelam o segredo de sua vida. Eles continuam inatingíveis, atrás dos vidros ou entre eles (quando Venosa cria a sensação de volume dispondo paralelamente várias lâminas). A vida interior permanece uma remissão ao infinito, para a qual aponta um número potencialmente infinito de cortes. Outro trabalho recente aponta para uma nova direção: é um casco oco, de forma indefinida, composto de grande número de pequenas placas triangulares. O casco se autossustenta não por estruturação interna ou por regularidade de forma, mas quase espontaneamente, como um conjunto de células em expansão. Nunca a sensação do orgânico, na obra de Venosa, foi uma casca tão fina.
A dobra de Gilles Deleuze, que associa a arquitetura barroca ao cálculo infinitesimal e às mônadas de Leibniz, é de 1988, um pouco posterior às primeiras obras importantes de Venosa. Não dá para falar de influência: apenas de um mesmo clima compartilhado à distância. Ainda mais adequado, talvez, para comentar essas obras, seja um trecho de A montanha mágica, de Thomas Mann: “O que era, então, a vida?... era uma febre da matéria... Não era nem matéria nem espírito. Era qualquer coisa entre os dois, um fenômeno sustentado pela matéria, tal e qual o arco-íris sobre a queda-d’água, e igual à chama. Mas, se bem não fosse material, era sensual até a volúpia e até o asco”.
A precisão técnica da análise e o prazer artesanal da construção, sempre presentes nos trabalhos de Venosa, concorrem para construir não um objeto, mas um corpo, com todas as ressonâncias de alheamento e ameaça que esse termo possa ter. A mosca acaba incorporando a máquina, ou vice versa, no entanto, no resultado final, a vida permanece como um ruído surdo, irredutível, inquietante.