Haveria muito a se falar, como sempre há quando o assunto é o salto, a passagem, o que está no ar.
E se fala, então, sempre, sobre os dois pontos, o que fica antes e o que estará depois, os trapézios construídos para que haja o salto. No caso de Ângelo Venosa os dois pontos podem ser o que é coisa viva e o que é coisa morta, o que é superfície e o que está atrás da superfície, o que é escultura (desenho?) e o que é o seu entorno, o que é construção lógica, o que é forma solta, aleatória.
Mas as peças expostas na Galeria Mercedes Viegas, na Gávea, são belíssimas e aí não dá mais vontade de falar nada, adeus racionalizações.
Flora Sussekink, no catálogo, traça paralelos com as "vanitas", essa espécie de natureza-morta onde a morte está efetivamente presente, com ossos, caveiras, e cujo assunto é sempre o tempo.
Ronaldo Brito, em crítica anterior, acentua a "interioridade oca" e aí o assunto já é o espaço.
As dez peças expostas têm dois milímetros de espessura, com uns dois, três metros de largura e altura. São de aço ou alumínio. Ficam na parede. Foram feitas todas agora, em 2005. Custam entre R$ 10 mil a 20 mil. As de alumínio, cinza pálido e espelhadas, adquirem as cores da luz que refletem. As de aço, escuras e opacas, vão somando lentamente as cores da ferrugem que as cobre. Ou seja, as de alumínio falam do espaço em torno delas. As de aço, do tempo. E mostram, em ambos os casos, uma aparência de rendas ou de qualquer outra coisa decorativa, no sentido índio do termo.
Não precisa ser índio. Qualquer coisa de muito antiga, pré-histórica, que descobrimos, redescobrimos, como válida para saltos atuais, um ritual ainda e sempre necessário. E eis mais dois daqueles pontos que nada têm a ver com o salto mas que acreditamos, para nosso conforto, que existem: o tempo como história, aristotélico, e esse outro, perene, atávico, que nos volta sempre.
Rendas são buracos de pano, sua existência é, já, a de uma ausência. É o estágio intermediário entre pano e não-pano. O momento da passagem.
Decorativismo são desenhos que trazem uma ordenação, uma construção para vencer tanto o tempo quanto o espaço. A superfície decorada aponta - pelo ritmo e repetição de seus traços - o tempo gasto em uma passagem qualquer, do interior para o exterior ou vice-versa. Morte, nascimento, comida. Aponta também o espaço onde esta passagem se dá: a cumbuca para o milho, o vaso mortuário. E esse espaço tem necessariamente um oco. A superfície é tanto mais decorada quanto é mais importante o que está por trás da superfície, a "interioridade oca", o após.
E o após é sempre morte, mesmo quando é vida.
Os primeiros rótulos dos produtos industrializados traziam arabescos que lembravam o cuidado artesanal dos produtos pré-industrializados. Os primeiros trens tinham carruagens estilizadas desenhadas na lateral de seus vagões.
No ritual de passagem de Ângelo Venosa, a morte (ou vida) parece ser um tipo de vento, um desequilíbrio estrutural que permite o trançar de fios de metal. É o mesmo tipo de vento que acolhe o salto de sua "baleia", a escultura que instalou em 1989, após vencer concurso público, na Praça Mauá do Rio, e depois no Leme.
O processo de Venosa é orgânico, não representa nada nem deixa de representar. Faz junto, igual. Não há metáforas, é literal, ele faz ao lado, ao mesmo tempo. A formalização do material usado é sujeita a percalços iguais aos de qualquer outra vida que morre. Sem romantismos. Apenas o exercício necessário para se chegar ao nada. Pode não ser um salto. Pode ser falha. A primeira, a que sempre vem.
Ângelo Venosa tem 50 anos, estudou xilogravura, depois pintura, há 20 anos faz esculturas. É um dos maiores escultores vivos brasileiros.