Essa nova exposição de Angelo Venosa deixa mais visível, especialmente em três séries de obras, o diálogo de sua obra com o desenho, sem abandonar aquilo que foi sempre o fio condutor de sua trajetória: a sua pesquisa como escultor, e por conseguinte o espaço como seu motivo condutor. Em série recente, o artista cria formas livres e orgânicas tendo o fio ou a linha como um traço que transmite àquela produção, presa à parede, um caráter de desenho no espaço.

Ensaio Felipe Scovino

Membrana

Essa nova exposição de Angelo Venosa deixa mais visível, especialmente em três séries de obras, o diálogo de sua obra com o desenho

Essa nova exposição de Angelo Venosa deixa mais visível, especialmente em três séries de obras, o diálogo de sua obra com o desenho, sem abandonar aquilo que foi sempre o fio condutor de sua trajetória: a sua pesquisa como escultor, e por conseguinte o espaço como seu motivo condutor. Em série recente, o artista cria formas livres e orgânicas tendo o fio ou a linha como um traço que transmite àquela produção, presa à parede, um caráter de desenho no espaço. Algumas formas se assemelham a fetos, e como as outras formas dessa série, que permanecem como, em um útero, abrigados, à espera do seu nascimento. Situam-se entre o ar e a água. Flutuando dentro do volume de acrílico, os fios logo transformam-se metaforicamente em medusas ou ainda naqueles seres que vivem nas profundezas dos oceanos e quando são descobertos nos fascinam pela sua estranheza. A própria condição de estarem “flutuando” cria uma condição aquosa para essas formas que estão ali sendo gestados, dentro de casulos, aguardando o momento de completarem o seu ciclo e finalmente habitarem o mundo.

Como uma sensação que sempre tive ao assistir às suas obras, mais uma vez se coloca uma experiência radical: são obras que nos afetam duplamente pela sua estranheza e pelo caráter de desconforto. Este advém pelo fato de não conseguimos elaborar exatamente a origem daquelas formas por mais que o arquétipo sobre o corpo seja uma evidência. Como nas obras que a precederam, essa nova série de trabalhos nos encanta e fascina pelo seu caráter arcaico e vivo assim como pela indefinição de seu tempo e lugar. São obras, como se isso fosse possível, que vagam por essa imprecisão e se constituem como uma espécie de eterno enigma sobre o que anunciam e como se comportam. De onde elas vieram? Quais seriam os métodos de comparação com o que conhecemos e portanto de que modo poderíamos alocá-las no mundo? Formalmente, um diálogo que poderia ser estabelecido seriam com as peças modulares das Reticuláreas (1969) de Gego, embora as obras de Venosa sejam em uma escala menor, ou com as Droguinhas (c. 1966) de Mira Schendel, mas ao mesmo tempo em que, como foi dito, transmitir uma metáfora de corporeidade àquele objeto constituído de tramas é um passo inicial, o que pode ser percebido em obras pregressas e na forma como transparecem categorias como uma “ossatura da escultura”, não interessa primordialmente a Venosa um vínculo estético com a tão falada matriz construtiva. O caráter gráfico que habita sua obra não pode ser confundido com a tradição concreta mas estabelece aproximações com a tecnologia, e mais especialmente nesse caso situa-se em um limite entre a escultura e o desenho, criando esse território híbrido e especialmente especulativo , como se esse rumor sobre o que significa aquela estrutura fosse interminável.
As esculturas feitas em bambu revelam um novo dado na sua obra. São estranhamente moles. Penso que nos acostumamos a ver suas obras como um enfrentamento que se colocava significativamente pela sua imposição física ou então estruturas compactas e fechadas. Ainda como uma estrutura aberta, vidente e visível, elas se caracterizam por soma e repetição de partes, assim como a obra feita em acrílico. Se por um lado a característica de fusão do dentro/fora e interno/externo as aproxima das Obras moles (1964) de Lygia Clark e dos Belts (1967) de Richard Serra - e esse diálogo se torna mais consistente quando as obras de Venosa estão presas à parede -, interessa ao artista não somente a passagem modernista do plano ao espaço mas significativamente explorar as texturas e volumes da madeira assim como as metáforas que venham a derivar dessas formas. Venosa estaria, nesse caso, mais próximo de Giuseppe Penone. Como nos “casulos”, citados anteriormente, o desenho no ar reaparece ao lado de circunstâncias como o furo, o oco, o olhar que penetra a “pele” e nos permite dar conta da estrutura interna da obra. É perspicaz o modo como o artista reúne propriedades da escultura e da arquitetura, principalmente quando ativa o arquétipo de abrigo. É da ordem da escultura porque estão lá a verticalidade e uma base por mais frágil ou disforme que seja, mas também paira sobre a obra um pensamento arquitetônico, aqui revelado de forma orgânica, uma estrutura constituída por pele ou membrana. E é justamente a ausência que paradoxalmente e poeticamente supre a noção de carnalidade da obra, pois é o ar quem “preenche” o volume. É uma escultura que dialoga intensamente com o vazio, como se dele dependesse a sua própria aparição e permanência no mundo.
Sob a mesma perspectiva, as obras em acrílico recortado e sobreposto apresentam um volume que conclama a ideia de vir a ser habitado ou preenchido. No seu interior, por entre seus vãos, os caminhos construídos pelas sobreposições de cortes simulam algo como uma caverna. Lembrando os volumes que são fabricados pelas impressoras 3D, que aliás é um mecanismo adotado pelo artista, esses grandes iglus brancos (e um cinza) perpassam uma associação que é recorrente na obra de Venosa: a fronteira tênue entre o artesanal e a apropriação maquínica, ou como o ofício do escultor, historicamente ligado ao trabalho manual, faz uso da tecnologia. Por mais que a gestualidade nesse caso seja algo “invisível” ou distante, porque é a máquina quem delimita a forma e elimina qualquer erro ou deformação, e a superfície adquira uma consistência segura e precisa, a organicidade está presente. Aparentemente oca, é a sua “ossatura” quem revela a grande rede de significações. Entretanto, habita nessa obra um acento irônico ou errático, pois o que consideramos com sendo um bloco escultórico, o mesmo passa a fazer o papel de um plano, dificultando a sua visão frontal e a perspectiva do observador. Contudo, estão lá as estruturas sinuosas que investem na expansão das formas, e a multiplicação de planos que como formações geológicas alargam seus limites e que também podem ser compreendidos como cavidades, estreitos, veias que eliminam as retas e permitem que emerjam novamente os dois arquétipos que sobrevoam sua obra: a morada e o corpo.
As caixas pretas e brancas com seus desenhos sobre o acrílico criam um vínculo direto com os acrílicos recortados. Conseguimos nos deter na trajetória de um desenho que deriva do plano e irrompe no espaço, e em um processo inverso os planos dos acrílicos recortados desfiam-se e se revelam como formas livres nas caixas. Contudo, se a superfície de uma é opaca, a outra revela-se como uma transparência total e digamos inclusiva, pois o espectador como em um jogo de espelho é refletido para o interior da obra, acentuando ainda mais o caráter corpóreo dessa série. Embora não sejam radiografias, um elemento com o qual Venosa está acostumado a operar, essa nova série exibe, por via de outra estratégia, o limite tênue entre o natural e o irreal, ou entre o orgânico e o sintético. Se uma apropriação mais gráfica é um sintoma nessas duas obras, na grande escultura feita em chapa composta, Venosa explora uma vertente geométrica, ainda que distante dos antepassados neoconcretos.
Sua aparência incomum que a remete a um exoesqueleto remonta a algumas de suas esculturas realizadas em meados dos anos 1980, sendo revelada em todas uma atmosfera orgânica, na qual percebemos uma forma estranha, sendo envolvida por uma carapaça. É essa capacidade de realizar parábolas entre obras de diferentes tempos e ampliando esse aspecto com o elemento da invenção, explorando novos materiais e, acima de tudo, perseguindo uma forma e aprofundando a sua pesquisa estética que a sua obra percorre. Nessa nova escultura torna-se recorrente a imagem de uma obra icônica do artista, a ossatura da “Baleia” (1988) que “pousou” sob o Leme. Colocando lado a lado as duas obras, agora, o que nos é tornado visível é o aspecto de carnalidade desse animal, aquela ossatura, sem pele e órgãos, é finalmente preenchida. Não se trata tanto de pele ou membrana esse último trabalho mas de um preenchimento desse estado opaco das esculturas de Venosa. É uma obra que possui um caráter singular nesse aspecto, mesmo que as propriedades arqueológica e orgânica (e mesmo inorgânica) estejam presentes, e que se constituem como presenças constantes em sua pesquisa. É uma escultura que se apresenta como um fóssil, um corpo que passado um tempo impreciso é descoberto e se apresenta na contemporaneidade como um fator de incongruência e simultaneamente como registro de memória. Deslizando pela parede e, assim como as outras obras da exposição, desejando o espaço, esse corpo de outra era afirma o incansável e bem sucedido plano do artista: a arte como território de invenção que põe em dúvida as nossas certezas sobre o mundo.

 É claro que esse lugar de invenção de Venosa encontra um terreno que como Paulo Venancio Filho denomina seria o da “tradição escultórica dos corpos” (in: VENANCIO FILHO, Paulo. Metamorfoses do corpo. In: CANONGIA, Ligia. Angelo Venosa: a febre da matéria. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 55).