eu comecei pela xilogravura. Fui aluno do Babinsky, ainda no ginásio, em São Paulo. Depois, um pouco antes de vir para o Rio, freqüentei a Escola Brasil. Não deu em nada mas foi uma coisa fascinante

Entrevista com Márcio Doctors

No ateliê da Lapa

Márcio Doctors — A gente poderia começar pela dificuldade de falar sobre a obra.

MD — Porque existe uma dificuldade aí. De certa maneira, ela nasce do fato de que, quando você fala, você mata. Eu tenho essa relação com a palavra, acho que ao falar, ao enunciar, alguma coisa deixa de ser vivida. Principalmente em relação à arte, que é muito do fazer. Morre alguma coisa nesse momento.

 

AV — Eu sinto que a palavra é insuficiente, quando você tem que representar um espaço tão impreciso. Isso me lembra uma conversa que a gente teve sobre a área de penumbra, de imponderável, que cerca o trabalho.

 

MD — Nós estávamos falando de como as pessoas se relacionam com sua própria criação. Que o processo não é necessariamente acumulativo, ele pode ser um processo de esvaziamento também. Tenho sentido que as pessoas têm muito medo de mostrar que, na realidade, qualquer processo criativo está muito ligado a esvaziamento. Eu mesmo, quando sento para escrever, o fato de já ter escrito um texto não faz com que o texto seguinte seja mais fácil ou melhor. Ao contrário.

 

AV — Às vezes eu tenho a sensação de que não vou conseguir fazer o próximo trabalho, que estou esgotado.

 

MD — Mas eu acho que dá sempre essa paúra. A gente tem que desmistificar essa questão, porque o processo não é necessariamente acumulativo mas uma maturação por esvaziamento. Num certo sentido, eu vejo isso no que você faz. Quase que a materialização dessa sensação. Me lembro da primeira vez que vi o seu trabalho, fiquei impressionado com a idéia de que uma escultura pudesse ser feita a partir do vazio. Não no sentido do Henry Moore, de lidar com cheio e vazio. A estrutura interna é oca, literalmente. Isso é que eu acho fascinante.

 

AV — Essa forma de fazer contraria a escultura no sentido convencional, em que você tem um volume de onde vai retirando partes. Eu penso até que o que eu faço não tem muito a ver com escultura. Ou melhor, acredito que tenha alguma coisa de pintura, do feed-back que a pintura tem. No decorrer do trabalho acontecem transformações, partes são retiradas e partes agregadas. Tenho a impressão de que isso não é usual na escultura, você retirar e acrescentar. Aliás, eu nem sei que importância isso tem.

 

MD — É uma referência. A meu ver o importante é você ser um escultor com sabor de pintor. Não sei se é pelo fato de você ter nascido da pintura. E acho que agora você poderia até falar sobre esse processo: como foi a passagem da pintura para a escultura?

 

AV — Na verdade, eu comecei pela xilogravura. Fui aluno do Babinsky, ainda no ginásio, em São Paulo. Depois, um pouco antes de vir para o Rio, freqüentei a Escola Brasil. Não deu em nada mas foi uma coisa fascinante.

 

MD — Então deu em tudo!

 

AV — Eu quero dizer que não aconteceu nenhum trabalho disciplinado, foi mais a fascinação. Pra mim, com 17, 18 anos, foi muito forte. Aí, eu vim para o Rio, fiz a ESDI, que, não preciso dizer, foi um grande corta-barato. No começo dos 80, depois dos muitos fluxos e refluxos em relação a assumir a condição de artista, recomecei a pintar. De início sozinho, depois no Parque Lage, com Luiz Áquila. Isso valeu, no mínimo, pelo que normalmente vale uma escola, a iniciação no meio. Conheci o Daniel Senise, que estava alugando um ateliê com o Luiz Pizarro - ateliê ao qual acabei me juntando. Enfim, foi com a pintura que comecei minha disciplina de trabalho. Mas, até hoje não sei ao certo o que era a pintura para mim. Fico com a impressão de que era uma espécie de obrigação moral. A história da arte é a história da pintura, falando de uma maneira esquemática. O ponto de vista privilegiado é o da pintura. Principalmente na história do século, da arte moderna. A passagem para a escultura foi um rompimento com o que eu considerava a linguagem por excelência, e a descoberta de que era possível criar um trabalho pessoal, com meus próprios instrumentos.

 

MD — Eu acho curioso você tocar nesse ponto. Acho muito bonita essa idéia, de que a história da arte é a história da pintura. Nunca havia pensado nesses termos. Tendo até a concordar com você: houve uma mistificação nessa direção, de transformar a história da arte numa história da pintura. Mas quando começamos a mergulhar um pouco mais, descobrimos que as grandes experiências foram no campo da escultura. Acho mesmo que as grandes experiências se dão nas formas híbridas, entre a pintura e a escultura. Sempre me impressionou isso no Antonio Dias, naquele momento em que ele é tridimensional também. Agora, é verdade também que, no Brasil, a tradição e a experiência escultóricas são muito pequenas. Os escultores se contam nos dedos.

 

AV — Eu não consigo relacionar o que estou fazendo com a escultura brasileira, pelo menos com a que eu conheço. Principalmente porque a escultura que mais aprecio é a da vertente concreta e neo-concreta.

 

MD — Seria interessante você tentar estabelecer um paralelo entre o concreto, e o neo-concreto e o seu trabalho.

 

AV — Fico com a sensação que faço algo como um sincretismo entre uma série de informações teóricas e as coisas do meu mundo, da experiência acumulada. De repente tudo se junta. No meu trabalho, apesar disso não ser aparente, tem um rigor que talvez possua um parentesco com a construção. Um rigor não rigoroso.

 

MD — Pelo contrário, é um rigor rigorosíssimo! Voltando àquela história do oco, o que sustenta tudo isso é uma estrutura. Apesar de ser depois recoberta, como se você trabalhasse com várias peles, é quase uma estrutura corpórea. A aparência meio orgânica pode confundir, e ao mesmo tempo aponta para uma coisa meio surrealista, uma imagética. O tratamento pictórico tem um caráter expressivo e, no entanto, a coluna dorsal, o que sustenta, é uma construção. Quando olho para o seu trabalho acredito que por trás dele se esconde uma densidade racional, de construção, de engenharia, e essa engenharia é camuflada.

 

AV — O que eu gosto é justamente esse modo pelo qual uma série de coisas díspares conseguem se organizar. É esse terreno do ambíguo, esse sincretismo também...

 

MD — Eu acho que o grande poder da arte é essa capacidade de juntar. Ela junta e inventa o novo. Conflui para uma personalidade, que dá um nó naquilo tudo, rearranja e cria alguma coisa nova. Eu acredito na arte como invenção. E se não for isso, não vale a pena.