Angelo Venosa é representativo desse mal-estar com as determinações especialistas do modernismo, embora, como também seus pares de geração, não pudesse prescindir das referências e do legado universal desse passado.
A perspectiva romântica que se descortina no trabalho de Angelo Venosa, por meio de seu viés expressionista, remonta à década de 1980, período em que a obra se originou.
Os anos 1980 primaram pelo hibridismo dos gêneros e movimentos históricos, com resultados heterogêneos, figuração desordenada e diversidade material, tentando se contrapor às experiências reducionistas da arte conceitual e do minimalismo da década anterior. Com o retorno da subjetividade, do gesto, da intuição e de uma consciência plena da pluralidade e da fragmentação, os artistas dessa geração reanimaram o ideário romântico, um dos principais vetores da produção da época. Diversas formas da genealogia do romantismo foram resgatadas, como o barroco, o simbolismo, o maneirismo e o expressionismo.
E, sem dúvida, o neoexpressionismo que ali se afirmava tinha por objeto a revalorização do lirismo e do drama, a requalificação do sujeito na arte, assim como a recuperação do contato corporal dos artistas com seus meios. Essa volta ao artesanato parecia contrariar o filão do ready-made e das matérias industriais, além de reacender uma prática que havia sido desprezada pelos aparelhos técnicos e pela questão da reprodutibilidade.
Venosa fez parte de uma juventude que à época se indispunha contra os rituais das autonomias modernas e de suas utopias, com procedimentos que pareciam rebater os ideais puristas do modernismo, por meio do ecletismo e de uma revisão cética da história da arte. A proposta era contaminar os gêneros e as linguagens do passado histórico, com obras que rejeitavam, sobretudo, as especializações e a racionalidade moderna. A pegada neoexpressionista de Venosa, portanto, não tinha por objeto a apropriação imediata do ideário clássico alemão, com seu teor sublime e heroico; ao contrário, ela procurava dispositivos estéticos que pudessem, na justa medida dessa recuperação, contestá- la. Assim, por baixo de seus volumes amorfos e fragmentários, da “pele” escura dos tecidos e do gesso que os envolvia, Angelo Venosa escondia uma estrutura geométrica de rigor formal filiado às vertentes construtivas, em um amálgama de linguagens, por princípio, inconciliáveis. A estrutura subjacente funcionava como a ossatura de um corpo, invisível em sua presença, mas latente, e vislumbrada por baixo daquele volume informe global.
A junção em uma mesma obra de dois processos precisamente antagônicos — construtivo e expressionista — parecia corresponder à colagem histórica que as vertentes pós-modernas passavam a efetuar e significava uma reviravolta nos códigos autônomos da história moderna. Surgia ali, para os próprios parâmetros da crítica, uma ambiguidade formal e conceitual difícil de abordar, em disputa frontal com as especializações modernistas. A obra de Venosa mostrava, sem constrangimento e com pleno êxito, que pulsões contraditórias podiam comungar um mesmo espaço físico e espiritual, e que seus enunciados estavam justamente conectados com essa revirada transversal dos estilos.
Nesse sentido, faz-se oportuna a lembrança de outro artista brasileiro que nos idos anos 1960 também parecia desarranjar a sintaxe linguística a que se acostumara a historicidade mundial: Ivan Serpa. Sabe-se que Serpa realizava trabalhos contemporâneos uns dos outros, mas com linguagens díspares. Podia passar de telas geométricas e meticulosas, como as de viés neoconcreto do Grupo Frente, às pinceladas livres e aos drippings do informalismo, e ainda realizar pinturas expressionistas, como as de sua famosa Fase Negra. Ainda mais curioso é constatar que a Fase Negra foi concomitante a obras de inclinação pop, o que constituía, sem dúvida, um paradoxo — ou, como muitos preferem, uma liberdade estilística impressionante. A Fase Negra correspondia a questões existenciais explícitas e a uma angústia lírica torrencial, enquanto as obras de acento pop, ao contrário, apontavam para uma figuração de variedade cromática exuberante e bem-humorada. Mais do que um problema para os teóricos, contudo, a obra de Serpa parecia um prenúncio da contrariedade pós-moderna com a pureza das disciplinas modernas, igualmente contestadas pelos artistas que emergiam na cena dos anos 1980.
Angelo Venosa é representativo desse mal-estar com as determinações especialistas do modernismo, embora, como também seus pares de geração, não pudesse prescindir das referências e do legado universal desse passado. A ossatura invisível de suas esculturas recicla a experiência do projeto construtivo brasileiro, com remissões a artistas como Amilcar de Castro e Franz Weissmann, assim como, simultaneamente, o formato final dos volumes, já recobertos com as matérias informes, recicla o potencial aberto por nossos expressionistas, em especial Oswaldo Goeldi. O caráter sombrio e fantasmático das esculturas de Venosa alude certamente às gravuras de Goeldi, à atmosfera trágica e macabra de seus traços e à sua espiritualidade visionária. A influência do clima noturno e terrível do gravador já estava na Fase Negra de Serpa e acabou por se infiltrar na obra de um jovem da geração de 1980.
Venosa manteve o acento romântico-expressionista no decorrer de todo o percurso do trabalho, exacerbado, porém, nas obras das décadas de 1980 e 1990. Sem a clareza dos contornos clássicos da ossatura interior, o que se dava a ver ao espectador eram esculturas que beiravam o monstruoso e o absurdo, na linhagem lúgubre de Goeldi e das figuras bestiais de Goya. As peças lembravam mutilações de corpos desconhecidos, muitas com a exposição real de ossos, dentes e caveiras, elementos recorrentes ao longo de sua produção.
No início da trajetória, como mencionado, o artista partia das estruturas rígidas e regulares — o esqueleto do volume — para depois revesti-las com tecidos, gesso, resinas e espuma, construindo corpos orgânicos que contradiziam o planejamento retilíneo de sua base. A partir daí, irrompia na obra a ambivalência entre construção e dissolução da forma, dilema que contrapõe a mirada expressionista à construtiva e, em níveis mais profundos, o racional ao irracional, e que é um dos fundamentos do próprio trabalho. Também
o jogo entre o natural e o artificial, a geometria e as pulsões do inconsciente, enfim, entre a realidade e a ficção, estava lançado desde as primeiras peças, inscrevendo a obra em domínios ambíguos, no limiar dos territórios reconhecidos e na fronteira entre o extraordinário e a história.
Interessa observar, em relação ao processo da obra, que Angelo Venosa pas- sou a se dedicar às artes plásticas em 1982, quando frequentava as aulas da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Começou sua experiência artística com a pintura, inicialmente aguada e delicada, mas logo percebeu o ímpeto pela quebra da tela e a busca da tridimensionalidade, quando rasgou o linho e introduziu um volume no rasgo. Detonava-se ali o interesse pelos estados transitivos, pela passagem entre as coisas e por processos ambíguos de construção, que passariam a vigorar no conjunto das esculturas futuras. A quebra da linearidade da superfície, com o ganho simultâneo de um elemento concreto e corpóreo, não apenas atestava sua inclinação escultural, como introduzia novas motivações para explorar a dinâmica do espaço e do tempo, diretamente vinculada ao real.
Nas obras que logo se seguiram à descoberta do veio tridimensional, Venosa já estava a construir esculturas com a visão de um corpo vivo, partindo do esqueleto para chegar à carne e à pele dos objetos. O artesanato meticuloso e duradouro da preparação desses corpos não impedia, contudo, que episódios acidentais na feitura interviessem na compleição figural das peças e as dotassem de perfis instáveis e imprevistos. A permanência do cromatismo soturno dos negros e terrosos, porém, parecia resistir ao acaso, na busca constante dos tons climáticos e mórbidos tão caros aos expressionistas históricos. Entre o programado e o fortuito, o corpo das esculturas surgia como fruto da intencionalidade de um sujeito e as derivas dessa vontade, como se fosse um ser absurdo, florescendo fora dos ditames de suas raízes. Desde então, Venosa declara o desejo de investigar a vida e a morte dos volumes, o que lhes dá existência e dinamismo, o que os modifica no caminho e o que os petrifica eternamente.
A primeira peça que afetou o método do artista foi também a sua primeira escultura pública, de 1990, apelidada popularmente de “Baleia”, mas na verdade sem título, hoje instalada na praia do Leme. A partir desse trabalho, Venosa inverteu seu processo de realização e se pôs a explorar diretamente o interior dos volumes, como a desvelar o que acontece por baixo de sua aparência. O interesse, portanto, foi dirigido de imediato para a ossatura que sustenta a massa da escultura, deixando que essa ossatura, por si mesma, constituísse a integridade da forma. Como em uma aula de dissecação, ele retirou a pele dos objetos para chegar aos elementos estruturais, às articulações que originam seu corpo. Esse corpo, agora desencarnado, permeado pelo vazio ou transparente, passou a apresentar-se em fragmentos, expondo suas camadas subterrâneas, como se estivesse fatiado por um aparelho de tomografia. Ao inverso das operações anteriores, a nova escultura, subdividida em lâminas, propunha a redução do volume a uma geometria de planos.
Dos ossos ao corpo, ou vice-versa, Angelo Venosa parece nos remeter continuamente ao fluxo que indicia a fossilização da coisa viva ou, ao contrário, a animação dos mortos. Seu trabalho é uma enquete permanente sobre o estado físico da escultura, com ênfase na questão da morte temporal dos objetos. Nesse sentido e nas obras mais recentes, não procura dotá-los de aspectos cinéticos explícitos, mas sim dinamizá-los no espaço, com a exposição de suas fatias e a percepção fluida que tal segmentação produz no ambiente. Um exemplo claro dessa formulação é a obra Turdus, de 2009, que simula o crânio de um pássaro, fatiado em planos de acrílico suspensos no ar. A identificação da figura depende do movimento do espectador ao seu redor, surgindo e desaparecendo a todo instante, conforme a perspectiva da visão que se obtém nesse deslocamento. Com espaço e temporalidade flutuantes, composta por fraturas que apenas se reconstituem sob determinados ângulos de observação, Turdus aciona momentos alternantes de estaticidade e mobilidade, de vivacidade e morbidez, inscrevendo uma estrutura inteiramente volátil.
Atravessando o desenvolvimento da própria história da escultura, dos volumes densos da Antiguidade às primeiras conquistas modernas, com a liquefação das matérias em Rodin, até a busca da imaterialidade total, como nos néons de Dan Flavin, o processo escultural debate-se entre a corporeidade e a desencarnação, e Venosa parece incorporar esse debate, na íntegra, nas questões que formula em seu trabalho. No início, suas peças buscavam a carne — corpo e pele na superfície aparente de um volume; em seguida, esclareciam o esqueleto por trás da carne, desmaterializando sua presença. Não sem motivos, esse segundo momento foi pródigo no uso de vidros e acrílicos, cuja transparência favorece a ideia da suspensão material. O embate entre
o corpo e o vazio, com reflexos nos próprios materiais utilizados, remonta a uma questão crucial do artista: suas inquietações sobre a mobilidade e a coagulação ou, em última instância, sobre a vida e a morte. De natureza menos crua que as peças anteriores, as obras que se desenvolvem a partir do final dos anos 1990 sugerem uma morfologia mais enxuta e austera, revirando a poética de Venosa em direção a um senso agudo de precisão. A própria segmentação figural em fatias exige um planejamento digital prévio, recurso que o artista passa a explorar sistematicamente. A esse respeito, importa ressaltar um novo paradoxo que se introduz no método: a simbiose do artesanato com a máquina. O “esqueleto” agora é engendrado em computador antes de sua fabricação, reportando-se, obliquamente, não apenas às sociedades mecanizadas, como à percepção fragmentada do mundo contemporâneo.
A dialética entre cultura e natureza torna-se mais evidente, embora já fosse sensível nos trabalhos iniciais e seja questão recorrente no conjunto da obra. Importante frisar que o romantismo, ao qual o discurso se atrela, esteve sob inspiração constante da natureza, mas o entendimento da natureza na modernidade se ampliou para a arquitetura e o tecido urbano e, hoje, não se pode mais omitir a “paisagem digital” inserida nesse contexto. A própria especificidade do termo admite, contemporaneamente, um significado expandido que ultrapassa sua definição original. Angelo Venosa, ao assumir a máquina como um recurso positivo na concepção da obra e a ação incontornável de sua presença no mundo atual, contraria o primado expressionista do século passado, que manifestava desencantamento e revolta contra a era mecânica. O expressionismo, em seus princípios originais, associava as sociedades industriais e o progresso tecnológico à decadência e ao declínio da civilização. A apropriação do viés expressionista por Venosa, portanto, é ambígua, como de resto todas as apropriações de estilo engendradas pelas operações pósmodernas. Se, por um lado, o artista reaviva matérias brutas e naturais, cria uma atmosfera noturna e dramática para seus objetos e busca uma relação tátil e afetiva com seus meios, como ditavam os expressionistas alemães, por outro, irrompe com matérias e processos industriais, incluindo os dispositivos virtuais da computação, subvertendo a visão nostálgica e anacrônica do expressionismo histórico.
A exposição panorâmica do artista resume o trajeto que se desenvolve desde os anos 1980 aos dias de hoje. Sem configurar-se como uma retrospectiva, nos moldes exaustivos tradicionais, a mostra parte de um repertório seleto de obras que expõem o percurso do método e suas questões fundamentais, com as formulações primordiais e os saltos poéticos operados ao longo do tempo.
A exposição não se orienta pela cronologia dos trabalhos; ao contrário, mescla peças de diferentes datas e técnicas, procurando fomentar a compreensão de uma linguagem global em que os processos e os conceitos se unem e se reclamam necessária e mutuamente.
Uma das esculturas, no entanto, das mais recentes e de grande formato, parece anunciar nova guinada no trabalho, pretendendo ser, ao mesmo tempo, a grade e o corpo do volume. A ossatura vira pele. Formada por placas de alumínio costuradas, ela constitui um corpo rígido, facetado e geométrico, mas, simultaneamente, a forma derivada das costuras resulta num objeto informe. Aliás, seu ponto de partida é uma massa plástica moldada à mão, informe na origem, que depois é fatiada e desenvolvida em computador até que cada mínimo segmento dessa moldagem se transforme num plano. Sofisticado e complexo, o novo procedimento renova o método de Angelo Venosa, unifica as partes esculturais e mesmo conceituais de seu projeto, sem, contudo, perder os fundamentos que sempre cercaram seu pensamento. A ambiguidade que permeia suas operações permanece, e parece surgir ali um novo Bicho, que se assemelha, mas não se reconhece, nas esculturas de Lygia Clark. Sua aparência visivelmente geométrica engendra desvios, irregularidades e um estranho desenrolar dos planos, que descaracterizam a matriz construtiva, numa espécie absurda de simulacro sem modelo.
Outras duas esculturas, também recentes, em acrílico preto e branco, parecem instaurar um procedimento renovador no curso da trajetória. O método continua íntegro: o fatiar digital de um corpo em planos que se superpõem. Dessa vez, entretanto, o resultado da sobreposição tem por objeto, além da subdivisão do todo em camadas, o corte do volume em duas partes distintas, que saem uma da outra, formando um díptico. E mais: pelas cores alternadas do preto e branco, configura-se um objeto de desenho ótico incomum, que novamente remonta à tradição histórica, como à op arte, por exemplo, mas que desarranja inteiramente o planejamento dos efeitos regulares desse movimento. O acaso incide sobre os jogos da sobreposição e o desenho que se forma, mais uma vez, é fruto de uma consciência e de suas derivas.
Venosa diz que as colunas antigas de mármore, que costumava ver na Itália, e também elas fatiadas em diversas cores do material, podem ter estado, inconscientemente, em seu imaginário. As colunas, porém, parecem ter sido derretidas, virado poças, e sua liquefação pode estar ligada tanto à ideia do desmonte do passado, quanto, inversamente, à de sua eterna permanência.
Entre o expressionismo e a geometria, o artesanato e a máquina, entre razão e delírio, Angelo Venosa cria situações fronteiriças que se alternam do fragmento ao todo, do linear ao informe, do lírico ao fantasmático. Obra singular no panorama mundial da escultura contemporânea, seu trabalho tem a capacidade paradoxal de mover-se no terreno da história, mas, sob a perspectiva da crítica e da transformação, de alternar o mundo dos sólidos com os vazios e, sobretudo, de expressar simultaneamente a intensidade das paixões e o recolhimento do silêncio.
Publicado em A febre da matéria, Cosac Naify, São Paulo, 2013.