Estas linhas que se seguem referem-se ao texto de Reinaldo Roels discutindo um texto meu para uma exposição de Angelo Venosa.
Elas servem menos como uma tréplica e mais como um papo sobre possíveis discordâncias quanto ao que seja o romantismo e sua herança, o sublime, o belo, a relação entre arte e a história, e portanto sobre o estatuto da produção artística contemporânea nela incluída, é óbvio, a obra de Angelo Venosa. Eu falo num papo, e não numa tréplica por duas razões: primeiro, por não ver na sua resposta ao meu texto nenhum sentido belicoso, e sim uma série de questões extraídas de uma leitura atenta que abrem para um diálogo, um papo, frutífero; o que me agrada bastante. Segundo porque este tipo de veículo usado, o computador, é uma espécie de Salão oitocentista contemporâneo (as pessoas em casa, privadamente, debatem temas de interesse público) mais apropriado para os bate-papos do que para as discussões geralmente vaidosas, e por sinal muito pouco proveitosas, das Folhas de Jornais.
Vamos ao que interessa. Como apontei acima, nossas discordâncias parecem bastante significativas. Discuti-las-emos uma a uma. Comecemos pelo Romantismo. Reinaldo fala de uma atitude romântica, eu falei de uma poética. O romantismo não é só uma atitude, portanto uma tentativa de agir de forma determinada sobre o mundo, o real. Ele foi uma atitude ao enfrentar os cânones classicistas que engessavam as Academias de arte, e ele continuou sendo uma atitude no seu desdobramento vanguardista que queria deixar de ser arte e transformar-se em política. Esta relação entre arte e política é um capítulo ainda muito pouco pensado da história de nosso século. Pois todos aqueles movimentos vanguardistas, ou melhor, os russos mais o futurismo e o dadaísmo, pensavam a arte como uma ação e não como uma obra. A ação é política, a obra é artística.
Separar arte e política não é ingenuidade, é uma necessidade. Neste aspecto, por mais delicado que seja, eu acho que o Beuys serve como exemplo. O seu legado político é o Partido Verde Alemão, o artístico é toda uma geração de artistas (na sua maioria pintores) alemães. É claro que a coisa é um pouco mais complicada do que isto, que a sua postulação (do Beuys) de que todos são artistas é extremamente política, e que as suas performances, atitudes, projeto pedagógico, etc. apresentam um caráter ético bastante forte. Todavia Ética não é política.
Esta confusão entre ética e política talvez seja flagrante no próprio Beuys. Mas voltemos ao Romantismo; este movimento enquanto deflagrador de uma poética original, parece-me ainda relevante para a contemporaneidade. O enfrentamento que se dá aí não é com as Academias, mas com o diagnóstico hegeliano, historicista, do fim da arte. O mundo prosaico da modernidade era incapaz, segundo Hegel, de fazer brotar uma harmonia ideal, bela, entre sujeito e mundo, entre forma e matéria. Impossibilitada esta harmonia, dá-se a superação da arte pela filosofia, esta sim o reino supremo da subjetividade emancipada. O que Hoederlin, Schelling, Schlegel, Novalis, querem é exatamente reviver na Alemanha a origem grega. Reviver não é voltar, nem repetir, mas pensar uma experiência originária trazendo a marca indelével da temporalidade. Neste aspecto eles não são nostálgicos, mas heróicos. Esta possibilidade era através da arte. A arte era a possibilidade de irmanar eternidade e temporalidade. Mas como Schelling, contrariamente a Hegel, pensava a possibilidade da arte no mundo prosaico, e portanto sem beleza, da modernidade? Entra em cena então uma estética do entusiasmo, que se contrapõe `a teoria mimética do classicismo.
É pelo entusiasmo que o gênio supera a realidade e a história na criação de uma arte interessante. Estes termos em negrito gênio e interessante caracterizam duas noções centrais da poética romântica, que de alguma forma nos ajudam a pensar o presente. O gênio supera as amarras do movimento histórico, ele não se deixa dominar pelo rolo compressor das determinações históricas. Todavia, ele não cria fora do tempo, sua obra não pretende nenhuma a-temporalidade. Esta sinuca de bico de ter que fugir do terror historicista (que diz coisas do tipo tudo já foi feito, a arte morreu etc, etc. ) com negar a temporalidade da arte é algo que começou com os Românticos e veio a ganhar uma atualidade dilacerante com o esgotamento das vanguardas. O resultado é uma estética do não-belo, ou seja, do interessante, do sublime, do cruel, do fragmento, do fronteiriço, do irônico, enfim, do risco. Não será romântica a contemporaneidade e Venosa? Ao que me parece, e isto é pura especulação por sinal todo este texto tem este caráter experimental a maneira que a contemporaneidade está encontrando para assumir o desafio do atual é através do cuidado com a matéria. Matéria aqui não necessariamente ligada à sensação, ao efeito de choque, mas ao contrário, como o elemento que instaura a significação, a transcendência da obra. A relação entre materialidade e transcendência deve ser pensada, e, é claro, negando platonismos arraigados no senso-comum.
Mas por que teria eu associado o Venosa ao sublime? Kantianamente o sublime é o in-formado ou o de-formado. Em outras palavras, o sublime, ao contrário do belo, não tem sua manifestação ligada à representação de uma forma acabada. Citando Kant: “Na representação do sublime na natureza o ânimo sente-se movido, já que em seu juízo estético sobre o belo ele está em tranqüila contemplação. Este movimento pode ser comparado (principalmente no seu início) a um abalo, isto é, a uma rápida alternância de atração e repulsão do mesmo objeto” (CFJ p104 ). Percebe-se então, que segundo Kant o primeiro embate com o fenômeno sublime suscita uma tensão entre atração e repulsão e é só pela projeção de idéias, pelo afastamento contemplativo do espectador em relação ao fenômeno, que advém o prazer. Este prazer no está ligado ao agradável, mas a um sentimento que surge na reconciliação. Diante desta compreensão, será que eu forcei uma barra ao falar do sublime no trabalho do Venosa? Talvez sim, talvez não. Pensarei mais sobre o assunto, mas por enquanto vou ficando com esta opinião.
Restariam algumas outras questões a serem abordadas, mas para não me estender muito, ou seja, para não ficar chato, falarei apenas da relação feita por Reinaldo entre belo, intranscendência, e colírio para a retina. Acho esta compreensão equivocada. Voltando novamente a Kant e é importante a referência a este autor que me parece inaugurar a estética moderna, a compreensão autônoma da arte, além dos seus textos apresentarem as noções de belo, gênio e desinteresse com o desgaste das apropriações recorrentes e banalizadoras feitas continuamente desde então percebe-se que a sua distinção entre o belo e o agradável visa exatamente garantir ao primeiro uma transcendência pela não consumação do objeto na imediatidade da apreensão. O belo que não trouxer consigo uma significação e uma transcendência, ou seja, que não tenha gravidade, é apenas agradável, ou por outra decorativo. A alienação desta dignidade espiritual do belo parece ter sido lugar comum no desenvolvimento da arte moderna. Ao que parece, desvirtua se assim a própria autonomia da arte, que se transforma numa brincadeira estéril que nega suas potencialidades. Como diz Hubert Damisch: Depuis Hegel, on s’intéresse a l’art en tournant le dos à Kant qui, lui, s’est intéressé à la beauté. Mais, attention, je n’ai aucun souci d’en revenir à la beauté dans les termes de l’académisme (Art Press, Jan 93). Os termos da academia dizem respeito aos cânones de beleza,
que o próprio Kant negava veementemente. O belo na arte é criado pelo gênio, que é um escolhido da natureza, que faz da obra uma medida, um exemplo, que não deve ser seguido como uma regra, mas que deve inspirar outros gênios. O gênio ao produzir a obra instaura, através da beleza, aquilo que Kant chama de idéias estéticas. É por isso que a thing of beauty is a joy forever, ou será que o decorativo permanece?
É isso .... um abraço,
Luiz Camillo