"Pode ser, mas, quando tenho um osso na mão, o que me encanta é a forma. Quase me esqueço de que em volta dele já pulsou alguma forma de vida" — Angelo Venosa

Matéria para Veja por Ângela Pimenta

A revolução da anatomia

Já houve quem associasse a agressividade das esculturas dentadas de Venosa à própria violência da sociedade brasileira.

Se não rejeita essa interpretação, o escultor também não a endossa. "Pode ser, mas, quando tenho um osso na mão, o que me encanta é a forma. Quase me esqueço de que em volta dele já pulsou alguma forma de vida", disserta. Desde criança, Venosa é fascinado por formas orgânicas. Antes de se formar designer, no Rio de Janeiro, ele já visitava a seção de desenhos de história natural do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio. Hoje, um de seus passatempos preferidos é a contemplação dos ossos, humanos e animais, que coleciona em seu ateliê.

Michelangelo Buonarotti passou a vida dissecando os mortos para melhor modelar os vivos. Por motivos diversos do gênio renascentista, o escultor Angelo Venosa é um assíduo freqüentador de um matadouro em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Nos últimos tempos, foi lá que ele conseguiu arrematar dois crânios e mais 70 quilos de dentes incisivos, todos de origem bovina. Seu interesse por essa matéria prima não é o do artista que deseja recriar em seu ofício a precisão anatômica gerada pela natureza. Como demonstram suas oito esculturas mais recentes, em exposição até ó dia 29 na galeria Camargo Vilaça (de 4 000 a 15 000 dólares), Venosa ocupa-se em criar formas fictícias que guardam um parentesco flagrante com a anatomia dos mamíferos, especialmente gente e bois.

 

Dono de um estilo próprio, qualidade cada vez mais rara na arte contemporânea, Venosa alcançou recentemente um apuro formal capaz de fazer= de suas obras pequenas jóias de beleza cruel e ambígua, que ao mesmo tempo convidem e repelem o olhar e o desejo de toque do espectador. Como explica o crítico Lorenzo Mammi, "Venosa assume o papel do criador que não pode transmitir a vida. Sua escultura se aproxima da múmia". Se ao longo dos anos 80 o escultor construía peças a partir de materiais viscosos e transparentes como resinas de poliéster e fibra de vidro, ultimamente tem investido em sólidos de características opostas. Além de materiais pobres, como dentes e ossos de boi, parafina e chumbo, Venosa desta vez esculpe também em bronze e mármore de Carrara, matérias-primas tradicionalmente ligadas à escultura acadêmica.

 

Inspirado na porção superior do fêmur humano, por exemplo, Venosa modelou um delicado "colar" em que dez peças de mármore branco se encaixam perfeitamente umas nas outras. O rigor obtido na peça evoca a economia formal presente na obra do escultor moderno, romeno Constantin Brancusi (1876-1957). Esse colar de mármore, a obra mais asséptica da atual safra do artista, teve seu formato reproduzido em outra peça, dessa vez brutalista, com mais de 1 metro de comprimento e esculpida em 140 fatias de aço.

 

Para modelar o metal, Venosa teve de recorrer aos préstimos de um computador. "Um amigo ortopedista me emprestou as imagens de uma tomografia de fêmur, que passei para a tela do computador. Isso ajudou muito no trabalho", conta Venosa.

 

Nem todas as etapas da gestação das peças, que organicamente consumiram nove meses de trabalho, foram indolores. As vésperas do vernissage, marcado para a última quinta-feira, o escultor ainda tinha os dedos cortados pelos dentes de boi, que fixou um a um no chumbo e na parafina. dos trabalhos, como quem coloca ladrilhos numa parede. Os dentes, aliás, exigiram um procedimento extra do escultor. Comprados no matadouro, tinham resíduos de carne e sangue impregnados, além do mau cheiro da morte. Para lavá-los, Venosa colocou-os numa banheira com uma solução ultraconcentrada de água oxigenada

 

Aos 40 anos, o paulistano Angelo Venosa, casado, pai de 'dois filhos, já é um escultor do primeiro time da arte brasileira e seu nome alcança certa expressão no circuito internacional. No ano passado, ele participou da Bienal de Veneza. Seus trabalhos, conjuntos de dentes de boi fincados em parafina, eram o melhor da representação brasileira. Neste ano, Venosa foi brindado com uma bolsa de artes plásticas da Fundação Vitae. Em novembro, expõe em Lisboa, onde tem compradores certos para seu trabalho. Seus ganhos com a arte, entretanto, não são suficientes para que abandone um emprego na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio, onde trabalha no departamento de editoração. Sua fisionomia pacata de funcionário público oculta o pesadelo presente em sua obra.